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“1917” – No meio da guerra

Em teoria, a ideia de 1917 enquanto produção é ousada: retratar um episódio de guerra em plano-sequência. No orçamento, os gastos dos efeitos especiais e sonoros não seriam módicos, porém o elenco não precisaria ser caro. A fórmula só não é melhor porque o roteiro não permite.

O filme se inicia em 06 de abril de 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, quando o cabo Tom Blake é incumbido pelo seu superior de uma missão, escolhendo o seu amigo e também soldado britânico, o cabo Schofield, para acompanhá-lo. A tarefa consiste em atravessar as linhas inimigas para entregar uma mensagem capaz de salvar os soldados de outro batalhão, onde seu irmão é tenente. Além de se tratar de território hostil, o tempo é exíguo, o que torna a empreitada quase impossível.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Na função de direção, Sam Mendes tem o seu melhor trabalho desde “Beleza americana”, superando o muito bom “007 – Operação Skyfall”. Dessa vez, a mise en scène é formidável: a câmera é colocada no meio da ação, como se o espectador estivesse inserido no filme, com tudo acontecendo ao seu redor. Com isso, a experiência fica completamente imersiva, reservando surpresas em relação ao fora de campo (utilizado ao ingressar no campo ou com recursos sonoros) e trazendo riqueza ao campo (como quando a dupla atravessa a trincheira, passando por soldados dormindo, fumando, conversando etc.). Por exemplo, quando a câmera faz movimento de ré por travelling, no prólogo, chama a atenção a belíssima passagem de uma paisagem bucólica pacata para um hostil palco bélico. Sem dirigismo exagerado, o plano-sequência se torna vívido, pois tudo acontece de maneira alheia (ainda que seja ilusão) à câmera. Mesmo quando os elementos cenográficos não são utilizados (cadáveres, animais mortos etc.), eles cumprem a função de criar a atmosfera real. Assim, o escopo de uma direção naturalista é atingido com maestria.

Entretanto, não há muita precisão em afirmar que o filme é filmado inteiramente em plano-sequência: assim como fez Hitchcock em “Festim diabólico” e Iñárritu em “Birdman”, elementos cenográficos servem como falsos cortes. É pouco provável que, por exemplo, um túnel completamente escuro não tenha sido aproveitado como corte. Mais que isso, há uma cena em que uma personagem fica desacordada, com tela preta, caracterizando um corte inegável. “1917” tenta ser o “Arca Russa” (filme russo de 2002, dirigido por Alexandr Sokurov, filmado em um palácio em São Petesburgo, que retrata episódios da história do país e que foi verdadeiramente filmado em um único take, sem cortes) britânico, mas não consegue ir além da ilusão.

Isso não significa, todavia, que o longa perde o seu lado épico, muito pelo contrário. Para além de uma cena grandiosa no quesito heroísmo (todas são, mas há uma que se destaca), tudo é filmado para ampliar a jornada, singela exclusivamente no seu objetivo (entregar uma mensagem). A fotografia é assinada por Roger Deakins, o que é praticamente uma garantia de qualidade – o que se confirma, pois a estética da película é sublime, utilizando tons acinzentados (no prólogo), castanhos (no desenvolvimento, dando um visual sujo em meio a ratos e cadáveres), esverdeados (cenas episódicas), azulados (na água) e avermelhados (quando há chamas). Imageticamente, não é transmitido nada muito alegre, contudo há ênfase no esforço dos envolvidos.

Essa ideia de esforço está presente no ritmo que Mendes imprime à película, que se torna cansativa em seu terço final. Ironicamente, um defeito se torna uma qualidade, já que o cansaço que o espectador sente se torna uma metáfora para a exaustão das personagens (isto é, sair cansado da sessão significa que ela obteve êxito ao demonstrar o quão fatigante foi a jornada). A trilha musical de Thomas Newman acompanha de forma magnífica o ritmo do longa, dividindo-se entre o tenso (que prevalece, com bom uso de percussão) e o dramático (de menor intensidade, com músicas de cordas). As músicas são quase todas extradiegéticas e instrumentais, salvo por uma, em sentido oposto, em uma cena mais lúdica. Há coerência, salvo por “A bit of tin”, que destoa do ponto de vista instrumental (por usar teclas) e teleológico (o silêncio funcionou melhor poucos minutos antes).

Escrito pelo diretor juntamente com Krysty Wilson-Cairns, o roteiro é o que o filme tem de mais problemático, não apenas por ser hermético e singelo, mas principalmente pelo excesso de acaso. Mesmo que a sorte esteja normalmente em desfavor das personagens (do contrário, seria deus ex machina), as coincidências superam a dose aceitável (notadamente o rato, o avião, o leite e a carona). Além disso, as personagens não têm grande desenvolvimento. Por outro lado, como o texto não exige muito, o elenco liderado por dois atores de pouca experiência (Dean-Charles Chapman e George MacKay) fica em segundo plano – não obstante, os dois vão muito bem. Nomes de maior calibre aparecem pontualmente, mostrando a diferença que um grande ator pode fazer em uma cena.

1917” não é inesquecível porque, a despeito da concepção ambiciosa e do primor técnico, não traduz inovação alguma na sétima arte. O filme é capaz de comover e certamente constrói uma atmosfera imersiva fenomenal – a ponto de, como mencionado, cansar o espectador em uma fração do que as personagens reais que embasaram o roteiro se cansaram. Sem dúvida, é uma experiência de cinema para ser presenciada no cinema.