“20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS” – A emancipação de novas narrativas
A metamorfose é um processo natural a qualquer espécie. Prevista pela ciência, denomina uma série de transformações necessária a todos os seres, determinando sua forma última e responsável por sua sobrevivência. Embora os escritos científicos descrevam aspectos físicos desse processo, não se pode negar como o mesmo se aplica à subjetividade humana. Subjetiva em suas múltiplas formas de ser e de estar, de manifestar a própria existência. É por esse registro último que 20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS se interessa, trazendo um comovente conto sobre a transcendência da auto determinação.
Durante uma viagem ao interior com a sua família, diversas angústias vivenciadas pela pequena Lúcia vêm à tona. Com apenas seis anos, ela é perseguida pela insistência de seu nome morto, sufocada pela impossibilidade de se reafirmar enquanto menina transexual. Quando a relação com a própria mãe se torna insustentável, ela deverá lutar pela liberdade de se conectar consigo mesma.
Dirigido pela espanhola Estibaliz Urresola Solaguren, o filme parte da sua valorização de um tempo extenso para ressaltar a insurgência silenciosa da protagonista. Subjugada pelo olhar dos incapazes de compreende-la, sua ótica se dirige às paisagens, ao exterior. Sua resiliência interna transgride as barreiras dos enquadramentos mais fechados, buscando os borrões deixados pelo movimento.
São desejos de si representados pela impermanência da imagem, esmiuçada em desfoques que dão a impressão de movimento. Tem-se interrompida uma transformação tão natural quanto a inocência intrínseca a uma criança, atravessada pela intolerância.
Apesar da clareza por detrás da motivação cultural do longa, é interessante observar como o mesmo neutraliza possíveis maniqueísmos. A dissociação entre Lúcia e sua mãe, por exemplo, se traduz não pelo antigo conflito do conservadorismo de encontro com a subversão biológica do gênero, mas sim pelo temor da primeira pela segurança da última.
Fica claro como esse desentendimento resulta em uma estrutura de algum modo genérica, especialmente na sua forma de encenar os atritos entre a criança e a figura de autoridade da mãe. Mas a integração entre a dupla e as simbologias que as permeiam acabam adicionando um novo fôlego.
São nas esculturas de Ane, figura materna interpretada por Patrícia Lopez Arnaiz, que a brilhante Sofía Otero, cujos olhos grandes e expressivos parecem esconder um verdadeiro universo íntimo, encontra uma ponte artística de sua expressividade. Ainda que indireta em sua maior parte do tempo, são líricos os quadros que justapõem a menina e as massas em formação. Tem-se o corpo em um estágio de molde, questionando as arestas de uma tradicionalidade ultrapassada, distante da necessidade de se encontrar uma definição exata.
Quem reconhece essa potência em questão é a avó de Lúcia, apicultora que encontra em seu propósito de vida a conexão com as abelhas. É a acolhedora vó Lourdes (Ane Gabarain) que compreende a naturalidade dos descobrimentos da neta, a ensinando sobre os insetos. Surge um refúgio no zumbido descontrolado das colmeias, identificação na argamassa doce nelas produzida, conexão entre o interno e o externo onde parecia haver hostilidade e temor.
Ainda que essa propriedade se expressa com um alto grau visual, a obra ainda se perde em uma imensidão de diálogos, verbalizando determinadas reflexões. Redutor não apenas pela oralidade de questões de uma complexidade inexplicável, o filme tateia a transcendência daquela jovem existência, ainda que não consiga alcançar todo o seu potencial.
Nem por isso, todavia, deixa de encontrar seu ponto alto em uma catarse de beleza sublimada, que não reivindica para si a resolução ingênua de toda uma representação, mas permite a libertação, pueril, inocente e vivaz, de uma personalidade sublimada.
Isso se deve à maneira como os minutos finais emulam uma reviravolta de calibre melodramático, anulando tais expectativas para burlar a formulação de qualquer outra forma de segmentação. Por mais que a valorização do exótico tenha seu lugar na história do cinema – especialmente no poder da imagem como criadora de rostos e seres dignos de comparecimento -, “20.000 Espécies de Abelhas” encontra seu triunfo na naturalidade de sua condução.
Não se deve condenar os historicamente subjugados a preservarem sempre nas mesmas histórias. Não se devem construir novas formas de discriminação na maneira de representá-los. Ainda que as lágrimas sejam ótimas para amolecer corações alheios, os sorrisos daqueles que tardaram em ocupar as telas merecem ter o mesmo impacto.