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“A AMANTE” – A política tunisiana

Apesar do nome (brasileiro) genérico, A AMANTE é um filme bastante singular. Premiado no Festival de Berlim, o filme conta a história do pacato e introvertido Hedi, um jovem passivo face às ordens da sua mãe, que toma todas as decisões da sua vida, inclusive elegendo sua futura esposa, Khedija. Em uma viagem a trabalho, ele conhece a livre e independente Rim, por quem se apaixona. Se quiser consagrar esse amor, Hedi precisará lutar contra tudo o que não lutou sua vida toda.

Em uma primeira leitura, trata-se de um romance no qual o protagonista é sufocado por uma mãe despótica e um chefe intransigente. Esses são elementos presentes na trama: o chefe não lhe dá licença para o casamento logo após o matrimônio (oportunizando-a apenas meses depois); no mesmo sentido, sua mãe o trata de maneira ríspida e manipula todos os aspectos da sua vida (e não apenas a futura esposa). Com o passar da narrativa, a mãe de Hedi se torna a vilã do longa, controlando até mesmo o orçamento do filho (o salário que ele ganha é retido por ela, que lhe dá uma mesada). Mesmo quando Ahmed, irmão mais velho de Hedi, tenta atenuar o autoritarismo da mãe (argumentando, por exemplo, que ele já tem vinte e cinco anos), ela diz para ele não se intrometer.

Porém, é de maneira fascinante que o filme sofre um twist natural, mudando a situação de todas as personagens. Esperar uma mudança no protagonista, em princípio, é o óbvio – ainda que não se saiba a medida dessa mudança, tampouco a direção -, todavia o roteiro tem a sagacidade de transformar também a mãe de Hedi, que, ao contrário do que pode parecer, não é unidimensional. Essa transformação, ainda, acaba sendo orgânica dentro do plot, o que demonstra esmero no trato das personagens. Além disso, mesmo parecendo, à primeira vista, um romance, a parte romântica é periférica na narrativa. Khedija, a noiva de Hedi, é uma moça farta da autoridade familiar à qual se submete em casa, e que busca a liberdade no casamento – liberdade para cuidar da casa e dos futuros filhos, evidentemente. Contudo, o noivo não parece, de início, tão insatisfeito com o matrimônio que se aproxima.

Ocorre que Rim representa muito mais que o interesse amoroso de Hedi. Sua personalidade desprendida e espontânea inquestionavelmente é um atrativo autônomo para ele, que não conhecia esse tipo de liberdade. Do ponto de vista da trama, a proposta funciona muito bem. Entretanto, há que se enxergar além dessa superfície: o diretor e roteirista Mohamed Ben Attia planejou com “A amante” uma grande metáfora para a Tunísia. Entre 2010 e 2011, os tunisianos passaram pela “Revolução de Jasmim”, em razão da qual o presidente saiu do poder (estava desde 1987) e foi elaborada uma Constituição democrática. Hoje, o país é um exemplo de democracia e respeito aos direitos humanos para o mundo árabe, mas esses avanços não foram alcançados com facilidade. O povo tunisiano é como Hedi: cerceado, acostumado a não tomar as próprias decisões (mas arca com as consequências do mesmo modo) e com um anseio inconsciente pela autodeterminação. No caso do filme, a fagulha que acendeu essa labareda é Rim.

Attia usa contextos contrapostos para exibir o sentimento do protagonista – este vivido por Majd Mastoura, que interpreta brilhantemente o papel, com um excelente clímax explosivo, mantendo o nível em momentos de inconformismo e alegria, dentre outros. De dia e com a família, Hedi é quieto e inerte; à noite e com a noiva, sente a permissão para ser quem é (período noturno que transmite uma sensação de clandestinidade). Porém, a inversão do plot faz com que essa lógica inicial seja abandonada: Hedi não quer ser dono de si mesmo apenas circunstancialmente. É de se notar que seu hobby é criar histórias em quadrinhos (tanto o desenho quanto a história em si), reforçando a ideia, metaforicamente, de alguém enjaulado. Para criar uma atmosfera mais intimista, o diretor coloca a sua câmera próxima do protagonista, filmando muitas vezes com over the shoulder e o acompanhando enquanto caminha, normalmente com pouca profundidade de campo. Ainda, para simbolicamente apontar o estresse pelo qual Hedi passa em seu cotidiano, o consumo de cigarro é crescente (estratégia banal, mas funcional) – sem aparecer, todavia, quando ele está na companhia de Rim. O cigarro é também símbolo de empoderamento, como ocorre quando sua mãe – vivida em alto nível por Sabah Bouzouita – é quem fuma.

A amante” retrata uma Tunísia lidando com a emancipação, mais ocidentalizada que muitos países árabes e distante do clichê desértico (já que o Saara ocupa parte grande de seu território) – a fotografia, nesse quesito, não abusa de tons pastéis. A mãe de Hedi é o arquétipo da mãe superprotetora, aquela que acha que sabe melhor do que o filho o que pode render a felicidade do próprio filho, lógica que justifica suas atitudes ditatoriais. Porém, há muito mais que uma história interessante sobre a relação entre mãe e filho. Também há mais que um dilema afetivo e mais que um retrato cultural: há um longa engenhoso que insere política subliminarmente em seu texto.