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“A CAMINHO DA FÉ” – A história de um homem de Deus e dos homens

Antes de qualquer coisa, é difícil abordar de maneira simplista os temas tratados em A CAMINHO DA FÉ. A busca e contemplação da eternidade são recorrentes não apenas no filme, mas em toda a história da religião cristã. E em mais de 2000 anos, é comum que, vez ou outra, apareça alguém que muda (ou ao menos tenta mudar) o paradigma do conservadorismo religioso vigente. Mas seria o protagonista desse longa um revolucionário pensador ou simplesmente alguém que se equivocou em suas ideias?

O filme acompanha a história de Carlton Pearson (Chiwetel Ejiofor), um bispo de uma grande igreja pentecostal. Porém, após uma tragédia pessoal, Carlton afirma ter ouvido a voz de Deus, desafiando-o a rejeitar tudo aquilo em que sempre acreditou. Ao afirmar que todas as pessoas serão salvas por Deus, independentemente de crerem em Jesus Cristo ou não, Carlton irá encontrar o abismo de seu ministério e de suas convicções.

O primeiro frame do longa é revelador: a Bíblia, aberta no livro de Atos, capítulo 1, e em seguida folheada pelas mãos do protagonista para o capítulo 2. É nessa passagem das escrituras que se encontra a história dos apóstolos de Jesus falando em várias línguas, causando confusão em todas as pessoas que passavam por Jerusalém aquele dia. Contudo, a confusão que Carlton posteriormente causaria em seus fiéis não revelaria exatamente algo sobrenatural, mas sim um abandono em massa dos crentes de sua igreja. De qualquer forma, é interessante perceber como Joshua Marston, diretor do filme, escolher iniciar a narrativa de forma a prender o espectador naquilo que é a tônica de todo a problemática do protagonista na história: a Bíblia Sagrada.

Sua apresentação como pastor convidado de uma igreja, logo no início do filme, revela uma característica humana que é explorada enfaticamente pelo longa. Carlton é apresentado como um superstar, com aplausos e sob fortes holofotes. Não obstante, em todas as vezes que a salvação é mencionada, no sentido religioso, a pessoa que pratica a ação é o bispo. “Eu irei salvá-lo”, “eu deveria salvar”, dentre outros exemplos, mostram como o roteiro de Marcus Hinchey trabalha não apenas uma questão formal da língua, mas também revela uma personificação da entidade salvífica um tanto quanto orgulhosa. Roteiro este, aliás, que perde oportunidades de explorar o personagem mais interessante do argumento. Reggie é excelentemente interpretado por Lakeith Stanfield, além de possuir inúmeras camadas e grande densidade para a trama. Homossexual e portador de HIV, sua relação com o bispo é tão fundamental quanto outras relações de Carlton como sua esposa, Gina (Condola Rashad) e seu amigo e parceiro Henry (Jason Segel). É através de Reggie que vemos o ponto de vista de quem nunca efetivamente se sentiu parte do plano da redenção divina. Como seu conflito interno é decisivo para o amarração do plot no final do filme, deveria ter sido gasto mais tempo com o ponto de vista de um personagem demasiadamente importante para a jornada do protagonista.

A boa fotografia, dirigida por Peter Flinckenberg, não se arrisca muito, mas acerta em cheio em detalhes fundamentais. Os tons de marrom, cinza e bege inundam a tela e dão tridimensionalidade à decadência do bispo. O uso de tracking shots precisos, que acompanham Carlton por detrás até sua subida ao púlpito, também refletem como o espectador está sempre acompanhando os passos do protagonista, pouco a pouco descobrindo e se questionando as mesmas dúvidas que ele. Há momentos onde a grandeza do templo parece ser assustadora, porém, em outros, os enquadramentos passam a sensação de proximidade necessária para ouvir com cuidado as palavras de Carlton. O uso de contre-plongées é moderado e não se torna repetitivo, pois não ousa a questionar que o espectador saiba que o protagonista é, de fato, alguém importante e supostamente “um homem de Deus”. A bela cena do bispo batizando (“batismo” no cristianismo significa nascer de novo) a si mesmo com água na cabeça, mostra a percepção dele para novos tempos em sua vida.

A grande questão, para o público em geral, não é se Carlton estava certo ou errado em seu questionamento. Muito menos se ele ouviu a voz de Deus ou se tudo era obra do diabo. A reflexão proposta, alavancada pela ótima atuação de Chiwetel, é válida e justifica a existência do filme. Não há um desfecho certo para a dúvida que assolou Carlton, mas sim uma autoafirmação de um homem convicto de sua crença e que não desistiu dela, embora tudo caísse ao seu redor. Se existe ou não inferno, ou se somos todos salvos por Deus é um mérito de interpretação pessoal e extremamente subjetiva. O filme sequer pretende entrar nesse aspecto de modo a convencer o espectador de algum valor espiritual. Sua proposta é atendida com louvor, e seus questionamentos permanecem após os créditos.