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A CASA QUE JACK CONSTRUIU – A “Divina comédia” de Lars von Trier [42 MICSP]

Obs.: excepcionalmente, esta crítica conterá spoilers, indispensáveis para a análise do longa.

Preliminarmente, escrever a crítica de A CASA QUE JACK CONSTRUIU é uma tarefa árdua. Com mais um exemplar esplendoroso da polissemia artística, Lars von Trier brinda o público ao elaborar uma obra controversa – e parcela dessa controvérsia decorre do próprio cineasta, bastante polêmico nos bastidores*. Assim, há quem defenda que “A casa que Jack construiu” seja a exteriorização de toda a misoginia do cineasta. Entretanto, essa não parece ser a visão do próprio Lars von Trier, que afirmou que “qualquer criminoso que tenha feito um filme suficientemente bom para o Festival de Cannes teria de estar lá”, sem olvidar a necessidade de prisão. Além disso, para ele, é “ridículo” que as pessoas não aceitem que ele diga respeitar Albert Speer (arquiteto-chefe e Ministro do Armamento do Terceiro Reich) como o “arquiteto maravilhoso” que foi: “não o respeito por ter sido um criminoso de guerra, mas pelo que fez do ponto de vista artístico”. Se ele estava sendo sincero em suas falas e atitudes deploráveis, certamente estava sendo sincero ao dizer que separa o autor (enquanto pessoa) da obra por este produzida. Não se ignora que há pessoalidade do artista na sua arte, mas os dois não se confundem.

Ultrapassadas essas longas – porém, necessárias – considerações preliminares, “A casa de Jack” é um filme maravilhoso que conta a história de um arquiteto que, durante doze anos, matou dezenas de pessoas, deixando os cadáveres em um frigorífico. Quanto mais impune permanecia, menor a sua preocupação com os rastros, certo de que nunca seria pego. Suas experiências são compartilhadas com Virgílio, com quem tem uma longa conversa que conduz a trama – semelhante à estrutura narrativa de “Ninfomaníaca”, pois lá também a protagonista narra a sua história.

Tudo começa com os nomes. Em inglês, Jack significa macaco, aquele aparato mecânico. Ocorre que Jack usa um macaco como instrumento para cometer um homicídio, entendendo que assassinato é arte. Ou seja, o macaco (“jack”) é instrumento para a arte, enquanto Jack, personagem, é instrumento para a arte de von Trier. Já Virgílio foi um poeta romano clássico, autor de “Eneida”, sendo mencionado também na “Divina comédia”, de Dante Alighieri (e é nesse sentido que o nome importa).

O protagonista do longa (ótima interpretação de Matt Dillon) se assume como psicopata, alguém cujo TOC pode comprometer suas atividades como serial killer. Jack é um verdadeiro sádico, alguém que extrai imensurável prazer das mortes que provoca. Sarcástico, sua bipolaridade é marcante: quer ser pego, pois está fazendo arte (e a arte serve para ser admirada); mas não quer ser pego, pois pretende continuar com suas ações; estrangula a sua vítima, mas pergunta como pode a ajudar. Jack não é deliberadamente um homicida, mas se tornou assim em razão das circunstâncias – o empurrãozinho foi dado em uma conversa bizarra com a primeira vítima. O diálogo da sequência é inquestionavelmente inverossímil, mas isso faz parte da proposta: o que a película propõe é simbolismo, não uma realidade completamente fidedigna (o que explica também a chuva que beneficiou o assassino).

A direção de Lars von Trier não é inovadora em relação às suas outras obras, isto é, há muita repetição do que ele mesmo já fez – e que poucos têm a audácia de fazer. Ele é constrangedor, subversivo e extremamente sádico, dirigindo o longa de maneira absolutamente despudorada (com alguns momentos nonsense, como a cena em que Jack e Virgílio simulam estar posando para um quadro). Violência e sangue não são problema e se justificam pela narrativa, algo semelhante ao que costumeiramente faz Quentin Tarantino, porém aqui mais visceral. Se necessário, membros são dilacerados, pouco importando a vítima. De maneira coerente, o design de produção usa bastante a cor vermelha em tom de sangue (a van, os bonés, o robe etc.), enfatizando o visual sanguinário. Nesse sentido, a direção é bastante ilustrativa no discurso no qual o longa consiste, com inserções extradiegéticas que tenham alguma conexão com o longa. Algumas imagens são perturbadoras, porém a criatividade é inegável – por exemplo, na metonímia em que o processo de putrefação do corpo humano é comparado à decomposição da uva, ou na metáfora em que Jack ensina sobre caça. O discurso é metalinguístico em relação às várias manifestações artísticas – pintura (Gauguin), música (Glenn Gould), literatura (Goethe) e arquitetura (Albert Speers). No caso da música, a trilha vai de Vivaldi a Bowie, de Louis Armstrong a Bach.

Em determinados momentos, ocorre até mesmo o flerte com o documental – von Trier não deixa de fora seu histórico de bastidores ao mencionar não apenas Speers, mas Hitler e outros. Há uso intenso de câmera na mão, quase nunca estática (o zoom é recorrente), o que indica didatismo do diretor – reforçado na animação dos postes (dentre outras cenas), metáfora brilhante sobre os processos cíclicos. Nesse caso, a opção é um acerto, pois permite que o espectador seja direcionado, intelectual e emocionalmente, para onde o cineasta deseja. Em outras palavras, consiste em uma manipulação necessária para uma obra deveras singular. Note-se que, mesmo com o didatismo, o filme é passível de diversas interpretações (o que prova que não houve exagero).

Não só de assassinatos vive o filme, cujo script tem um denso subtexto. Há sagacidade em mensagens subliminares, notadamente sobre o dinheiro ser mais importante que a segurança (um policial sem distintivo não é confiável, mas um agente de seguros é) e sobre a indiferença das pessoas aos atos reprováveis. Por trás do invólucro da misoginia existe uma crítica ao abandono alheio – caso contrário, não faria sentido a cena dos gritos de socorro. É também evidente o desvalor atribuído à impunidade, pois Jack fica decepcionado ao não ser descoberto. Seria o roteiro do longa um mero discurso de ódio, promovendo a violência gratuita e em especial contra mulheres?

A interpretação é plausível se considerada a personalidade de Lars von Trier. Porém – e aqui vem o principal spoiler, referente ao final do filme -, atentando para o desfecho da trama, não faz sentido que seja algo tão censurável. O protagonista é detestável e moralmente repugnante e não seria ilógico entender que ele é a projeção do próprio cineasta no longa. Entretanto, no fim, Jack vai para o inferno e, embora tente escapar, não consegue, pois está fadado ao sofrimento eterno. Seguindo essa linha de raciocínio, se Jack é Lars e se Jack está condenado ao inferno, por simples dedução se extrai que Lars sabe que o que disse (e o que eventualmente fez) foi desprezível e que ele não apenas merece sofrer por isso, como invariavelmente irá sofrer, como qualquer outra pessoa que faça o mesmo (o que não obsta o reconhecimento da qualidade do filme). A primeira interpretação antes mencionada, embora plausível, permanece na superfície de uma produção que vai muito além. Indo para camadas mais profundas, há um senso de humanidade e mesmo de retribuição (ainda que divina) que concedem coerência interna à película do começo ao fim. Trata-se de um epílogo nuclear para uma leitura profunda de “A casa que Jack construiu”, a “divina comédia” de Lars von Trier.

Se a reprovação da violência não ficou clara pelo desfecho, a música dos créditos cumpre esse papel: “Hit the road, Jack” (em tradução livre, “pegue a estrada, Jack”, na ideia de expulsão, pois o verso posterior ordena Jack a não voltar) não está lá à toa.

* Em 1991, no Festival de Cannes, o dinamarquês ganhou três prêmios, mas não a Palma de Ouro, o que o fez chamar o presidente do júri de “anão” e mostrar o dedo médio aos jurados. Em 2000, a cantora islandesa Björk ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes com “Dançando no escuro”, que rendeu a Palme d’Or a von Trier. A experiência dela foi tão ruim que a fez abandonar a carreira de atriz. Recentemente, Björk sugeriu atitudes abusivas cometidas por ele, sem citar seu nome. Em resposta, ele a chamou de louca e afirmou que dirigi-la foi uma “experiência terrível”. Nicole Kidman também não gostou de trabalhar com o cineasta, pois não quis repetir o papel vivido em “Dogville” na sua sequência, “Manderlay”. Em 2009, “Anticristo” não foi bem recebido por parcela dos críticos do Festival de Cannes, no que ele respondeu que faz filmes para si mesmo e que os espectadores são apenas seus convidados. Em 2011, “Melancolia” foi exibido em Cannes, mas von Trier foi banido (provisoriamente) do Festival e considerado persona non grata por declarar “compreender Hitler”, mesmo reconhecendo que o alemão fez “coisas erradas”. Posteriormente, disse que não precisava explicar que não era nazista e se desculpou em diversas oportunidades, defendendo que não estava sóbrio e que era apenas uma “brincadeira”. Atitudes lamentáveis – que ele mesmo reconheceu como tais – e que afetaram a sua carreira.

** Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.