“A CERCA” – Capitalismo e colonialismo [27 F.Rio]
O cinema pode ser corpo e pele. A câmera, a imagem e o plano podem enfatizar a fisicalidade dos atores. A narrativa e a recepção cinematográfica podem enfocar as reações sensoriais dos espectadores. Claire Denis tem consciência de tantas possibilidades e articula suas sensibilidades artísticas para fazer com que os corpos sejam elemento estilístico e temático de suas obras. Foi assim com o horror corporal sobre crises existenciais “Desejo e obsessão” e com o drama de guerra sobre uma masculinidade reprimida “Bom trabalho“. Mesmo que não seja seu melhor trabalho, A CERCA tem méritos para tratar da dimensão corporal sob uma perspectiva crítica, histórica, política e atenta ao presente.

Na África Ocidental, um canteiro de obras é palco de tensões sociais e raciais. Horn é o supervisor de uma empresa de construção britânica e trabalha com seu colega Cal. Ele espera a chegada da esposa Leonie para passar por dias melhores no trabalho. No entanto, a aparição de um morador local desestabiliza o cenário. Alboury demanda a devolução do corpo de seu irmão, morto em um acidente de circunstâncias suspeitas naquele local. O confronto entre Horn e Alboury evidencia estruturas de poder que vão além de um projeto de construção civil.
Claire Denis tem um olhar aguçado para observar os ambientes e as relações sociais de seus filmes. Para estabelecer geograficamente a trama, a câmera passeia pelos campos abertos do interior da África seguindo alguns personagens. E para definir o embate entre Horn e Alboury, a diretora usa a escuridão e a cerca como aspectos expressivos de dois mundos em colisão. Na busca pelo corpo do irmão, Alboury se mescla à escuridão do local como um espectro que não deixa o homem branco livre de suas contradições e culpas, assim como se mantém firme na missão de dar algum alento à mãe enlutada. Já a cerca cria um simbolismo forte para separar os privilégios econômicos e políticos da branquitude da violência que se abate sobre a população negra, podendo remeter inclusive ao apartheid e aos seus desdobramentos no presente. Ainda assim, ela não impede que os dois homens se confrontem.
A dinâmica dentro do canteiro de obras e os diálogos entre Horn e Alboury revelam disputas de poder e relações políticas que ultrapassam a morte de Nouofia. Para além de estabelecer que a morte não foi um mero acidente casual, a narrativa também comenta as ligações entre o colonialismo e o capitalismo que se iniciaram no século XIX e se estendem até hoje. Na fala de Horn, percebe-se uma preocupação com a origem de Alboury, se este é uma figura de autoridade do país ou um simples morador do vilarejo. Na sua mentalidade, uma oposição entre nós (brancos) x eles (negros) é construída, o que o faz querer se explicar sobre a morte ocorrida. Para ele, não faz sentido que um familiar queira apenas ter o corpo do irmão morto o mais rápido possível e não aceite outras ofertas. É verdade que há por trás uma tentativa de esconder o que, de fato, aconteceu. Porém, é possível sentir uma preocupação de fazer parecer que o empreendimento é eficiente e marcado por poucos imprevistos inevitáveis (uma marca do capitalismo contemporâneo). O discurso racista do colonialismo também se impõe quando o chefe de obras e Cal afirmam que aquela construção estava levando o progresso a uma área atrasada.
Da mesma forma que a premissa se expande para falar do colonialismo em sua vertente racista, o conflito central também relaciona as práticas coloniais a outras formas de violência e de ambiguidades. Cal é o personagem que mais confere possibilidades dramáticas à trama, já que sua entrada em cena coloca em voga o machismo que compõe o colonialismo. Ele busca Leonie, leva até o canteiro e interage com ela no local sempre com uma postura implícita de dominação e ameaça, sobretudo no chamado ambíguo de “baby” e nos momentos em que os corpos quase se tocam no trajeto de carro. Acima de tudo, são nas interações entre Cal e Horn que as incertezas se sobressaem. A princípio, eles parecem simplesmente aliados em um empreendimento capitalista que não irá garantir sucesso financeiro aos dois, mas somente aos chefes que devem ser servidos obedientemente por conta das hierarquias de classe. Por isso, um protege o outro de falhas ou crimes cometidos. Quando o filme vai mais a fundo, a relação entre os dois homens sugere uma tensão sexual que deve ser sempre suprimida em função da noção de masculinidade dominante do colonialismo. Uma noção que não se encaixa com as fotografias no quarto de Horn.
Esses elementos temáticos são trabalhados com outras soluções visuais criativas da cineasta. A violência física ou simbólica do colonialismo aparece rapidamente na sequência em que Alboury imagina uma conversa com o irmão (ou apresenta aos espectadores a dimensão racial da situação). Os dois homens deitados lado a lado, a escuridão opressiva ao redor deles, a aproximação de um cão raivoso, a narração de Alboury e as imagens do ataque do animal cumprem bem a função de sintetizar visualmente os pesadelos atribuídos aos negros pelos brancos. Mais adiante, a sugestão de uma tensão sexual entre Horn e Cal é reforçada pelos planos fechados nos rostos dos atores, uma escolha estética que também contribui para o desenvolvimento dos conflitos dramáticos em torno da causa real da morte de Nouofia. Em determinados momentos, a construção visual chama mais atenção do que o trabalho dos atores, já que há um desequilíbrio entre as atuações sólidas de Isaach de Bankolé como Alboury e Tom Blyth como Cal e um trabalho mais burocrático de Matt Dillon como Horn.
Por um lado, Isaach de Bankolé faz de Alboury um homem decidido na missão de levar o irmão morto para a família, beirando um estoicismo inabalável exceto pelos instantes em que suas emoções transbordam diante do corpo. Em uma linha complementar, Tom Blyth toma para si grande parte do filme por transitar entre as contradições de Cal com paciência, revelando aos poucos as facetas complexas de um personagem que não pode ser compreendido plenamente. Já Matt Dillon não consegue sustentar à altura os embates com o restante do elenco, em especial aqueles que ocorrem entre Horn e Cal. Desse modo, a dramaturgia não carrega o mesmo peso consistente que as escolhas formais de Claire Denis. Embora o material original seja a peça de teatro “Combat de Négre” de Bernard-Marie Koltès, “A cerca” não se limita a ter uma abordagem teatral. A diretora resolve bem as questões visuais, mas a conclusão dramática não tem o mesmo resultado, sobretudo por conta de um desfecho que tem momentos isolados interessantes (como a volta para casa de Alboury) e um confronto final menos impactante.
*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).



