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“A COBRA NEGRA” – Mistério místico e ancestral [27 F.Rio]

Alguns filmes não precisam ser compreendidos racionalmente pra impactar os espectadores. As rações sensoriais podem vir de onde menos se espera e provocadas pelo poder da linguagem cinematográfica. sobre nossas sensibilidades. Em A COBRA NEGRA, o deslumbramento frente ao desconhecido e o mistério diante de experiências transcendentais são experimentados sem a necessidade de uma trama movimentada ou sequências dotadas de muita ação. A conexão simbólica com as imagens já é o bastante.

(© ARP Sélection / Divulgação)

Nada parece inovador na premissa do filme e nem é necessário. Após dez anos de ausência, Ciro retorna ao deserto colombiano de Tatacoa. Na região, sua família vive há várias gerações. O retorno é motivado pela visita à mãe no leito de morte e o faz confrontar pessoas abandonadas e decisões amargas do passado. Muito mais do que depender de um roteiro original, a narrativa se sustenta em sua concretização visual.

Tão importante quanto os personagens é o deserto de Tatacoa. O cineasta Aurélien Vernhes-Lermusiaux e o diretor de fotografia Sylvain Verdet criam planos muito expressivos, ao colocarem Ciro e o pai em uma jornada pelas paisagens áridas do local para se despedirem da mãe e da esposa, respectivamente. Em determinados momentos, o naturalismo da decupagem associa as condições geográficas à aridez do relacionamento entre pai e filho, sendo ambas incapazes de demonstrar tudo que sentem. Em outras passagens, planos abertos ressaltam a grandiosidade da área e o silêncio da natureza de forma a oprimir as figuras humanas na sua limitação frente à magnitude do deserto. A combinação entre os espaços naturais, a abordagem estética e a disposição dos atores constrói uma sensação dominante de mistério, de incompreensão de forças místicas ou ancestrais que pertencem àquela terra, remontam a distintos níveis de passado e alcançam o presente.

Grande parte dessa aura misteriosa vem da força do misticismo da região e da família de Ciro. Uma narração em voice over explica a crença da mãe do protagonista em uma narrativa mítica que relaciona uma divindade em forma de cobra, os seres humanos e a origem do deserto. Por isso, a mãe carrega uma corrente no formato do animal e uma serpente passa por seu corpo no leito de morte. Nesse ponto, o trabalho se completa à construção visual e transmite um efeito místico a cada instante em que se escuta um sibilar de cobra próximo aos personagens. Além de evocar a religiosidade tradicional dos moradores, o animal também sugere um vínculo com a ancestralidade. Ciro passou muito tempo fora e precisa restabelecer os laços com sua família, sua gente, sua terra e cultura. A reconexão é feita com uma abertura para o realismo mágico, sobretudo no encontro simbólico do homem com uma cobra gigante, metáfora possível para um encontro com a mãe e suas tradições culturais mais antigas.

Os elementos visuais e sonoros são mobilizados para desenvolver os personagens e seus conflitos sem contar com um roteiro detalhado ou expositivo. Ciro não é um homem de muitas palavras nem de emoções muito claras, o que faz com que as lacunas e os silêncios sejam a base da atuação de Alexis Tafur. Os pequenos gestos, olhares e toques definem os estados emocionais de vários personagens e a evolução narrativa deles, não sendo necessário, então, linhas de diálogo muito evidentes nem eventos excessivamente explicativos. Por exemplo, as frustrações deixadas pelo fim da relação entre Ciro e Ana são retratadas pela dificuldade de comunicação entre eles. Tais obstáculos podem ser representados literalmente pelos poucos diálogos que travam ao longo do filme ou metaforicamente na cena em que o celular descarregado do homem o impede de ouvir um áudio enviado pela mulher. Além disso, a reaproximação entre Ciro e o pai não precisa de uma conversa muito comovente, pois não faz parte da personalidade deles e um aperto de mão é o bastante para isso.

Como o deserto e a cobra são elementos simbólicos que recuperam a ancestralidade, “A cobra negra” trabalha um processo de conscientização por parte de seu protagonista. Ele passou muito tempo distante de sua terra e de sua família, algo que enfraqueceu os laços de pertencimento e o tornou um homem sem casa e sem história. Por mais que seja uma conclusão melancólica para ele, é uma jornada capaz de levá-lo à percepção da importância dos saberes e tradições legados por sua mãe e da continuação dos legados através das gerações. Portanto, prestar os últimos respeitos à sua mãe e reconhecer suas crenças significa levar adiante a história sobre a origem do deserto em relação com as divindades. Trata-se de um movimento que leva Ciro a buscar um vínculo com a filha que não viu crescer, destacando a força da avó na trajetória dela. Nessa passagem, o filme ressalta que as mulheres são muito importantes para a conexão ancestral da família. Outro simbolismo criado metaforicamente pela narrativa enquanto o protagonista empreende sua jornada específica em busca de outro local em que se sinta mais pertencente.

*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).