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“A FELICIDADE NÃO SE COMPRA” (1946) – O verdadeiro significado da riqueza

Tudo tem um preço, exceto a felicidade. A ideia é clichê, mas muito bem desenvolvida no inspirador A FELICIDADE NÃO SE COMPRA, filme geralmente associado ao Natal, sem ter, todavia, temática natalina. O longa é tão extraordinário que o nome brasileiro funciona tanto quanto o original (“It’s a wonderful life” ou “é uma vida maravilhosa”, em tradução livre), algo que não é muito comum.

Seu enredo foi diversas vezes imitado na sétima arte (nunca, contudo, com o mesmo êxito): um homem desiludido e deprimido recebe uma ajuda mística para perceber a sua importância e ganhar novo ânimo. O homem desiludido é George Bailey; a ajuda mística, o anjo Clarence. Se este conseguir ajudar aquele, ganhará as asas que tanto almeja. Antes, porém, Clarence precisa aprender sobre a vida de George, o que faz com que o anjo visite a sua vida desde a infância.

Escrito pelo diretor, em conjunto com Dalton Trumbo, Clifford Odets, Jo Swerling e Michael Wilson, o roteiro do filme tem uma estrutura narrativa bem delineada de três atos: no primeiro, a incumbência é recebida por Clarence, que passa a assistir a episódios da infância de George; no segundo, o protagonista, já adulto, precisa enfrentar diversas intempéries em uma vida desgostosa; no terceiro, o anjo da guarda conhece George e inicia a sua tarefa. Nesse longo itinerário, que, inclusive, ultrapassa o período da Segunda Guerra Mundial – o filme se passa na pequena Bedford Falls, iniciando-se em 1928 -, diversas matérias espinhosas são tratadas, como a religiosidade (é significativa a revolta de George, que chega a ironizar a oração com a fala “é isso que se ganha por rezar”), a ganância (personificada pelo vilão) e os valores básicos da formação humana (caráter e amizade, dentre outros). Salvo pela frase do final, esses temas estão diluídos no roteiro, que evita, quando possível, exagero didático.

Outro acerto do script consiste na riqueza na construção das personagens. George Bailey é uma personagem fascinante. Embora pareça o paladino da bondade (chegando a sofrer um dano físico para salvar o irmão), é uma pessoa como qualquer outra, que pode se irritar e brigar com todos que estão à sua volta e que não têm relação alguma com a sua irritação. Embora seja altruísta (e é essa certamente a sua virtude principal, já que sua vida é voltada a fazer o bem a todas as outras pessoas, mesmo que em seu próprio prejuízo, literalmente), a hipótese de enriquecimento (leia-se, ter uma remuneração que nunca tinha imaginado), ainda que em detrimento dos outros, lhe é muito sedutora. George é um sonhador com um quê de Tom Sawyer – e a relação é feita pelo próprio filme ao citar o clássico de Mark Twain -, apenas perdendo a empolgação da juventude.

James Stewart foi uma escolha irrepreensível para o papel do protagonista: George transita entre diversos sentimentos – da raiva à alegria, da melancolia à empolgação -, sendo esse trabalho um dos melhores da prolífica carreira do ator. Quando necessária uma explosão dramática (seja chutando objetos, seja tremendo e lacrimejando), Stewart é tão convincente que a emoção parece real. O que Clarence quer devolver a ele é a alegria de viver, outro sentimento facilmente perceptível na sua interpretação. Henry Travers vive o anjo da guarda de George, que intitula a si mesmo como “a resposta para a sua oração”. A frivolidade humana não faz muito sentido para Clarence, que parece alguém tranquilo, eventualmente engraçado e muito ingênuo, o que combina muito com o papel.

Outros coadjuvantes têm seus momentos, como a sedutora Violet (Gloria Grahame) e o atrapalhado tio Billy (Thomas Mitchell) – nesse segundo caso, há a sugestão de um problema com o álcool, muito subliminar e sem aprofundamento, já que deixaria a trama inflada -, porém é a Mary de Donna Reed que se torna fundamental. Isso porque é ela quem tem as ideias para solucionar os problemas financeiros de George (não fosse por ela, talvez ele não saísse do lugar), revelando o roteiro, nesse ponto de vista, uma ideologia progressista – afinal, ela não é a mulher frágil que precisa de ajuda, mas a esposa que soluciona as adversidades que o marido enfrenta (para o ano de 1946, isso era muito significativo). Os momentos entre George e Mary são bastante adocicados (cantam juntos, dançam na piscina, ele promete dar-lhe a lua etc.), solidificando a felicidade que não pode ser comprada.

Quanto ao sr. Potter (mesmo sobrenome de uma das personagens de “As aventuras de Tom Sawyer”), embora ele pareça um antagonista maquiavélico e simplista, a verdade é que ele não é exatamente uma pessoa ruim, mas apenas um homem egocêntrico e ganancioso, incapaz de pensar nas outras pessoas. Lionel Barrymore acerta o tom da interpretação, pois não exagera nas maldades da personagem (incorreria no caricato) e convence quando Potter tenta agradar George.

A cena em que os dois conversam no escritório de Potter, por sinal, é ótimo exemplo da esplendorosa direção de Frank Capra no que se refere, em especial, à mise en scène: há uma pintura do vilão, que fica de frente para ele e nas costas dos visitantes (ou seja, ele enxerga a si mesmo a todo momento, algo bem narcisista), de modo que George divide o campo com a pintura (não tem espaço próprio); além disso, a cadeira onde o visitante se senta é desconfortável e o afunda, enfatizando a posição de superioridade na qual Potter quer se sentir. É também o escritório do antagonista o único local onde há um telefone de duas peças, enquanto que, em todos os demais locais (como a casa de Mary e a firma de George), há o modelo mais antigo, de três peças (separando os componentes entre a base, o vocal e o auditivo). Outra cena bem dirigida é a que George vai à casa de Mary e os dois falam ao telefone, em primeiro plano, de modo que a aproximação física e a troca de olhares gera uma sensação de desconforto, hesitação e desejo, nessa ordem.

Capra atribui simbolismo aos menores detalhes, como a parte do corrimão de George, que sempre cai, mas cuja queda é vista de diferentes formas a depender do seu estado de espírito. Consciente de suas escolhas, closes são usados somente quando necessários (por exemplo, quando Mary fica comovida com a expressão cabisbaixa do marido), assim como a subjetividade mental (na cena em que o protagonista volta para casa após conversar com Potter). A ideia do diretor não é conferir extravagância à película: seu objetivo é fazer com que o espectador entenda que todas as pessoas têm, cada uma, a sua importância, mesmo que não percebam. O que ele espera é que não precisem de um anjo que faça esse esclarecimento.