“A GAROTA DA AGULHA” – Estética ou cosmética?
Assistir a um filme mais de uma vez pode proporcionar experiências muito diferentes? A resposta é positiva porque, em cada momento em que se assiste, nem o espectador nem o filme se mantêm os mesmos. Os contextos variam, as sensibilidades mudam e a obra ganha outras possibilidades, fazendo com que a recepção seja um universo singular sempre atualizado. No caso de A GAROTA DA AGULHA, as experiências se transformam e criam um ponto de interrogação de resolução complexa: as escolhas estéticas do drama de época com toques de terror glamourizam os sofrimentos da protagonista ou conferem um olhar próprio de seu realizador para a história contada?

Na Copenhague pós-Primeira Guerra Mundial, Karoline é uma jovem grávida e desemprega luta para sobreviver. Ela é acolhida por uma mulher carismática quando pensa em tomar uma atitude radical contra própria vida. As duas, então, passam a receber crianças que não podem ser criadas por suas mães e fazem adoções clandestinas. Elas formam um vínculo inesperado até que Karoline descobre que as adoções podem não acontecer como ela imaginava.
Dramaturgicamente, o diretor Magnus von Horn inicia a narrativa como um drama histórico localizado no período entreguerras na Dinamarca. O princípio fundante da trama é a decadência de um mundo que parece frustrar qualquer lampejo de esperança para seus personagens. Karoline entra em um espiral de tragédias que lhe retiram expectativas de um futuro animador: trabalha em uma indústria têxtil por um baixo salário, é despejada da casa alugada por falta de pagamento, reencontra o marido, que julgava morto na Primeira Guerra Mundial, com o rosto desfigurado, recusa-se a continuar com ele porque se apaixonou pelo dono da fábrica, o casamento sonhado com o outro homem é impedido pela sogra, é demitida, descobre estar grávida em um cenário no qual não conseguiria cuidar bem da criança e quase coloca fim à própria vida. Todos esses eventos estão dispostos em um intervalo pequeno de tempo e evidenciam uma Europa em ruínas.
O continente está em crise por conta dos efeitos da guerra, embora, por exemplo, a Dinamarca não tenha participado diretamente. Ainda assim, há detalhes distribuídos em várias sequências que entrelaçam a dor da protagonista ao espírito coletivo pessimista dos europeus em geral. Entre os principais, estão os impactos sofridos por Peter quando retorna do conflito, como as lesões na face e os traumas psicológicos, a reconfiguração da economia para dar conta das necessidades bélicas de exércitos europeus, a pauperização dos habitantes e a degradação das cidades observadas nos planos abertos feitos pelo cineasta. Então, a narrativa se esforça para conectar a trajetória devastadora de Karoline à desesperança difundida pela Europa no início do século XX. A presença em cena de Victoria Carmen Sonne é forte para dar vida à fúria, ao medo, à impotência e ao desespero de alguém que perde as perspectivas do que poderia fazer com o próprio destino. Isso acontece, em especial, porque Magnus von Horn destaca com frequência o trabalho expressivo da atriz com closes em seu processo de deterioração.
Como encenar tantos acontecimentos destrutivos e emoções dolorosas? Ao longo da história do cinema, já se discutiu muito sobre as diferenças entre uma estética que agrega positivamente à ideia trabalhada e uma cosmética (termo cunhado pela pesquisadora Ivana Bentes) que estiliza em excesso temáticas sociais nas favelas e nos sertões com uma linguagem publicitária. Nesse sentido, a experiência de acompanhar ao filme com sua fotografia em preto e branco variando em tonalidades de cinza pode render reações díspares. De certa maneira, a fotografia pode sugerir a glamourização das imagens, como se o realizador estivesse interessado em buscar os planos e os enquadramentos mais belos esteticamente. Seria um esforço pela criação de composições que gritam ser uma verdadeira arte e ditam os padrões elitistas do que seria um filme “artístico”. Além disso, Magnus von Horn se coloca em uma linha tênue entre dar sua visão autoral para o roteiro e explorar apelativamente a dor dos personagens, por exemplo ao enfileirar uma sequência de rostos em grande sofrimento no início e no fim da narrativa.
Por outro lado, a fotografia em preto e branco pode suscitar outras sensações quando Karoline conhece Dagmar. A convivência entre elas faz a protagonista especular que haveria esperança de dar uma vida melhor aos filhos de mulheres em dificuldades financeiras, já que a senhora aceita a ajuda da jovem para cuidar dos recém-nascidos enquanto buscam uma família adotiva. Porém, algo estranho marca esse processo, sobretudo porque a empatia de Dagmar tenta ocultar sentimentos angustiantes presentes no trabalho que realiza. Quando enfim a protagonista descobre o que acontece com as crianças, revelações chocantes inquietam a personagem e o público. A partir de tal momento, a iluminação ganha contornos sombrios típicos de um pesadelo, como se pode observar nas visões que Karoline começa a ter após descobrir o que a amiga fazia e participar de uma das ações. Logo, seria possível intuir que as escolhas estéticas do diretor se direcionam pela ideia de que o drama em questão se intensificou tanto que se transformou em horror, impregnado nos eventos factuais em si e na encenação visual.
A reviravolta chocante com relação ao tratamento dado às crianças permite ao filme oferecer cenas que se constroem pela sugestão. É assim quando Karoline vê Dagmar cometer um ato brutal em uma viela, ela própria faz o mesmo dentro de uma casa e, mais à frente, age desesperadamente por não conseguir lidar com as consequências de suas atitudes. O enquadramento pode cortar parte das ações cênicas e deixar de revelar todos os acontecimentos em curso para mostrar apenas o resultado final, decisões que já são suficientes para gerar impactos significativos. O choque pode crescer ainda mais se for levada em consideração os desdobramentos simbólicos de destinos por si só bastante trágicos para as crianças: a perda de esperanças para o futuro vem acoplada à destruição da inocência infantil. Trata-se de algo grave que afeta, inclusive, a menina que vive com Dagmar por conta de sua proximidade com riscos severos à própria vida. Ao ser confrontada publicamente pelo comportamento, a senhora se expressa com uma visão de mundo igualmente perturbadora. A sequência utiliza o discurso, os espaços e a mise-en-scène para novamente apresentar a devastação moral de um mundo fragilizado pela guerra e pela miséria.
Em alguns minutos depois, a conclusão reafirma o princípio geral de um universo diegético que se baseia no pessimismo de um contexto histórico localizado para discutir a fragilidade das esperanças por um futuro melhor. O reencontro de Karoline e a suposta filha de Dagmar poderia sugerir a expectativa por um destino esperançoso, mas observado de perto ainda é um momento desolador porque o convívio entre elas continuaria cercado por pobreza, fome, carência e falta de direitos básicos. Mesmo trabalhando ocasionalmente com eficiência a transição entre drama e horror, “A garota da agulha” é afetado pelas implicações das escolhas estéticas pela fotografia em preto e branco. Em algumas passagens, pode evocar o senso histórico da narrativa e a decadência de um mundo, já em outras pode ficar refém de efeitos não desejados de estilização exagerada de imagens aterradoras.
