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“A HISTÓRIA DE SOULEYMANE” – Existência como ato político

Souleymane caminha, corre e pedala pelas ruas de Paris enquanto trabalha como entregador. Em cada quarteirão atravessado e indivíduo encontrado, ele se depara com as questões políticas do convulsionado mundo contemporâneo. A situação precarizada do imigrante africano discriminado na Europa é o aspecto mais visível e diz respeito aos problemas dos refugiados em um contexto xenófobo. A platamorfização das relações de trabalho no capitalismo tardio é um aspecto subjacente e trata do uso das tecnologias digitais na exploração neoliberal. A importância da publicização das histórias de vida é o elemento político simbólico que intensifica a força de A HISTÓRIA DE SOULEYMANE.

(© Bonfilm/O2 Play/ Divulgação)

Após entrar ilegalmente na França, Souleymane consegue trabalho como entregador de alimentos por aplicativo. A cada dia, precisa lidar com várias entregas, uma rotina exaustiva, baixa remuneração e riscos variados. Enquanto isso, o homem se esforça para gravar uma história passada por Barry e apresentá-la convincentemente em uma entrevista que pode definir se terá ou não residência legal no país. À medida que a entrevista se aproxima, as dificuldades crescem e colocam em xeque os projetos do protagonista.

Os trajetos feitos por Souleymane revelam a cada metro percorrido uma dimensão política nova. O imigrante africano sofre com as adversidades de um país hostil a sua presença: trabalha o dia inteiro, dorme a cada noite em abrigos diferentes para pessoas em situação de rua, carece de documentação regularizada, sente saudades da família e da mulher amada deixadas em Guiné e é discriminado pelos europeus, inclusive os descendentes de africanos. Ao mesmo tempo, enfrenta os obstáculos de trabalhar como entregador de aplicativo, como se acidentar, ser maltratado por clientes, sair de um serviço para outro sem descanso, receber avaliações negativas e se atrasar para pegar o ônibus em direção ao abrigo. Em ambos os casos, o personagem é invisibilizado e tratado como um ser inferior que não mereceria existir naquele local e ter seus próprios direitos como trabalhador.

Nas duas versões citadas acima, a existência como ato político é negada ao personagem. Como refugiado e imigrante ilegal, não consegue se sentir pertencente e acolhido ao país de origem que o vê como uma ameaça à segurança, à economia ou às tradições culturais. É o que ocorre em discussões travadas com Barry e Emmanuel, quando eles exclamam em tom pejorativo “Só um africano para fazer isso mesmo”. De modo complementar, ao deixar Guiné, Souleymane não é mais visto como um igual pelos seus pares, pois supostamente teria deixado a mãe e o interesse romântico para trás em busca de seus próprios interesses. Sendo assim, ele é colocado em um limbo indefinido de quem ele é, como é enxergado e quem poderia se tornar. Como trabalhador precarizado no mundo tecnológico da contemporaneidade, é apagado devido à ausência de documentos legais que o façam ser reconhecido como cidadão, algo que se reflete na necessidade de trabalhar no perfil alugado por Emmanuel para ele como se fosse o colega (não tem direito à fotografia no aplicativo e teme a descoberta do fato por policiais).

Consciente de que o universo da trama pode invisibilizar o protagonista, o diretor Boris Lojkine opta por uma decupagem que cria o efeito oposto. Os movimentos da câmera seguem um padrão que aproxima o espectador de Souleymane e estabelece uma relação de identificação, algo evocativo de uma abordagem documental e observadora. Quando as sequências externas se iniciam, a câmera acompanha o homem por trás, move-se para sua frente, exibe em detalhe suas ações e enquadra suas expressões faciais com destaque. O cineasta equilibra muito bem a perspectiva de observação relativamente distanciada, que se interessa por enxergar o personagem situado no contexto de Paris, e a imersão emocional do público nas condições adversas vividas por Souleymane, seja através de planos detalhe da utilização do celular, seja através de closes em um rosto convulsionado por emoções conflitantes. Os recursos se tornam, portanto, escolha estética e gesto político por retratar visualmente a existência de um indivíduo apagado em um país que não sabe como tratar os imigrantes/refugiados e sente os efeitos de novas formas de exploração capitalista sobre os trabalhadores precarizados.

Em outros níveis, o reconhecimento da existência do personagem reafirma os atos políticos que orientam a narrativa. A interpretação de Souleymane por Abou Sangaré transborda a diegese e alcança o universo extrafílmico, já que o ator encarna uma versão ficcionalizada de sua própria vida como imigrante africano na França. O preconceito, as dificuldades profissionais, a falta de documentação legal para a residência definitiva e a distância forçada em relação aos familiares e outros entes queridos também foram vividos por ele. De imigrante ilegal que sobrevive a duras penas e encontra pequenos trabalhos temporários, tornou-se ator reconhecido (juntamente com o filme) no Festival de Cannes em 2004, onde foi premiado na categoria revelação. Ao levar suas próprias experiências para a tela de cinema, Abou Sangaré confere sentidos artísticos e resistência política para uma vida marginalizada socialmente. E faz isso atravessando as diferentes respostas emocionais que pode ter quando passa por uma injustiça, sofre um golpe, perde uma quantia desejada de dinheiro, teme os riscos da entrevista, teme as agruras de uma sobrevivência pauperizada e protagoniza cenas singelas de carinho ou saudade da mãe doente e da antiga namorada.

Por mais que Boris Lojkine utilize a escalação de um ator não profissional para encenar a própria vida e faça uma decupagem cuidadosa para um personagem violentado, o conflito central volta a colocar em questão a invisibilização de sua identidade. Tendo a ajuda de Barry, Souleymane ensaia o que e como deve falar na entrevista em busca dos documentos de regularização. Em pouco tempo, é possível notar que a história de perseguido político, preso por divergências ideológicas em relação ao governo e vítima de torturas na prisão é uma estratégia para sensibilizar a entrevistadora ou atingir eventuais tópicos bem-sucedidos para seus objetivos. Como não faz parte de sua própria trajetória de vida, o protagonista é mais uma vez apartado de sua existência e precisa se moldar a uma realidade alheia a ele para sobreviver. A diferença entre sua própria história e o relato fabricado é evidenciada pelas várias sequências em que escuta os áudios feitos por Barry e memoriza os detalhes de sua “nova identidade”. Em meio aos sons de Paris, as gravações e os ensaios são novos ruídos que ocultam a existência daquele homem.

As idas e vindas pelas ruas para fazer as entregas convivem com a contagem regressiva para a entrevista. Em determinado momento, o espectador entra nessa espera ao ser informado de que ela acontecerá dali a dois dias. Nesse ponto, as desventuras para conseguir dinheiro, pagar os documentos forjados obtidos por Barry para sustentar a versão fabricada e memorizar o discurso levam o público a se preocupar se ele conseguirá ou não tudo de que precisa. Quando chega a entrevista e ela não se desenvolve como o esperado, a angústia aumenta. É chegada, então, a ocasião de o filme realizar mais um gesto político. Os comentários sobre as questões dos imigrantes africanos e da infiltração da tecnologia no cotidiano são o ponto de partida para uma conclusão que depende da história de Souleymane. Quando ele, enfim, conta sua história e a deixa ser mais conhecida, a política também se transforma em um ato de visibilização de uma trajetória, um corpo e um indivíduo marginalizado. O desfecho atinge seu ápice emocional e revela a importância de conhecermos “A história de Souleymane” e imaginarmos outras tantas que existem.