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“A MULA” – Indulgência

Aproveitando uma palavra usada no próprio filme, até que ponto a idade serve de indulgência? A característica de idoso serve para justificar quaisquer atos? É possível relativizar ofensas e delitos de um idoso pelo simples fato de o ser? Essa é uma das provocações de A MULA, novo filme do veterano Clint Eastwood.

O cineasta participa do longa como diretor e coprodutor (juntamente com Dan Friedkin), além de protagonizá-lo como Earl Stone, um idoso acostumado a deixar a família de lado para priorizar outras ocupações. Espontaneamente, ele percebe que sua opção de vida foi um erro, então tenta recuperar o tempo perdido. Em razão da falta de dinheiro, aceita trabalhar como mula para um cartel de drogas, descobrindo que sua aparência inofensiva e sua direção segura cabem como uma luva para a perigosa função.

Cartaz de “A mula

Eastwood parece traduzir muito de si em Earl, um “senhorzinho” pacato e carismático, mas muito arrependido de ter sido ausente da família. Bem-humorado (faz piada com viagra, com seus lírios premiados e até com um criminoso que considera autoritário, comparando-o a Hitler), ele tenta se reaproximar dos familiares após um erro ocorrido há doze anos, mas é repelido pela maioria, em especial pela ex-esposa Mary (Dianne Wiest, razoável como a personagem mais irritadiça da trama) e pela filha Iris (Alison Eastwood – meia-irmã do um pouco mais famoso Scott, ambos filhos de Clint -, talvez a melhor do elenco por transitar entre sentimentos extremos, mesmo aparecendo pouco).

No elenco, o trio Bradley Cooper (no piloto automático), Michael Peña e Laurence Fishburne é desperdiçado na forma de três policiais incompetentes. O grupo criminoso é chefiado por Laton (Andy Garcia, esforçado para lhe dar personalidade), que atribui a Julio (Ignacio Serricchio, ator argentino que interpreta um mexicano) a função de monitorar de perto o serviço de Earl. Em uma fala brevíssima, Julio é o único que sai da unidimensionalidade, defendendo que nem todos os que atuam à margem da lei escolheram esse caminho.

O prólogo sugere um drama enobrecedor, ao estilo “A cor púrpura”, porém “A mula” passa longe desse perfil (embora mire lições de vida). Eastwood não é eloquente, mas também não é discreto como diretor – por exemplo, na primeira corrida de Earl, o rádio ligado em um discurso religioso rapidamente muda para uma música qualquer, afinal religião não combina com as atividades espúrias que ele passa a praticar. A trilha musical de Arturo Sandoval se concentra em clássicos de jazz e country, como “Ain’t that a kick in the head” (Dean Martin) e “On the road again” (Willie Nelson), canções que realmente combinam com o protagonista. O encanto pelas mulheres de biquíni também combina, porém a sexualização exacerbada é vexatória (os closes nos corpos das figurantes são flagrantemente desnecessários, mantendo a objetificação feminina que Hollywood, a passos lentíssimos, tenta reduzir).

Baseado no artigo jornalístico de Sam Dolnick (e este baseado em uma história real), o roteiro de Nick Schenk se esforça para ser falho em todos os aspectos, a despeito do plot instigante (afinal, um senhor de noventa anos de idade trabalhando como mula de um cartel de drogas é capaz de render uma boa história). Há um subtexto de priorização da família em detrimento do trabalho e de que dinheiro não é tudo na vida (a fala de Iris de que Earl “demorou para desabrochar” é de uma cafonice incomparável), contudo os moldes adotados tornam a mensagem piegas.

Do ponto de vista ideológico, o texto enfatiza os estereótipos e preconceitos estadunidenses. O agente Treviño é o único latino residente nos EUA que não se envolveu no lado criminoso do tráfico de entorpecentes? O figurante do final é o único latino que não fala espanhol? Paradoxalmente, Laton e Julio conversam em inglês ao telefone – estariam eles querendo facilitar o trabalho da polícia nas interceptações telefônicas? Corroborando essa ideia, a piada com as “sapatas da moto” (sic), além de descartável, é de péssimo gosto.

Além disso, o script é narrativamente equivocado. Quando a narrativa está em 2005, a ideia é mostrar que Earl sempre colocou o trabalho acima da família. Nesse caso, não seria melhor mostrá-lo cuidando de seus lírios (até porque o afeto pelas plantas não aparece, apenas um ego contente em receber prêmios) ao invés de bebendo no bar? São várias as pontas soltas e fragilidades no texto: o filipino dá informações aos policiais de maneira aleatória, quase como deus ex machina, já que não se sabe sequer qual sua importância na organização, tampouco como ele consegue os dados; o microfone no carro de Earl é uma arma de Chekhov grosseiramente desperdiçada; o núcleo dos policiais é visivelmente desinteressante; há coincidências pouco críveis (justamente quando e onde Earl para na estrada é que aparece um policial com cachorro) e eventos que inexplicavelmente saem do desdobramento comum dos fatos (o que acontece com Laton, ao menos daquela forma imprevisível e improvável, é tão plausível quanto a queda de um cometa).

É possível ser indulgente com os atos de Earl, relativizando-os em razão da sua idade. Na verdade, ele tem um bom coração, como se extrai do conselho que tenta dar a Julio. Este, por sinal, na verdade também não é tão ruim, já que se afeiçoa ao idoso com o tempo (o mesmo ocorre com todos que dele se aproximam, inclusive os bandidos mais perigosos). Na verdade, o filme simplesmente não é bom. Sem indulgência para Eastwood.