“À PAISANA” – Um filme singular a partir de uma história já antes vista [49 MICSP]
A história que baseia À PAISANA poderia dar origem a um filme bastante clichê. É uma história já antes vista algumas vezes e cujo arco principal não possui nada inovador. Entretanto, roteiro, montagem e direção apresentam características capazes de dar personalidade única ao longa, expandindo a experiência que ele proporciona mesmo partindo de algo já antes visto.
Lucas é um jovem policial que trabalha em operações como infiltrado para prender homens que praticam atos sexuais em banheiros públicos depois de fingir interesse neles. Porém, ele precisa lidar com a própria homossexualidade, que não aceita bem e é um segredo para sua família. Quando, no trabalho, ele conhece Andrew, Lucas desenvolve uma paixão que poderá mudar a sua vida.

De início, é possível perceber que o roteiro de Carmen Emmi insere elementos originais em um núcleo não original. O conflito principal consiste em um jovem que resiste à própria homossexualidade, mantendo-a em sigilo, mas que se apaixona por um homem que faz com que ele enfim conheça a felicidade nesse âmbito. Entretanto, o dilema de Lucas (Tom Blyth, em ótimo trabalho) ganha complexidade quando se considera que ele não é de caráter meramente pessoal, mas profissional, pois se trata de uma disputa interna entre o desejo e o dever. O tema não é simples e gera abalo no protagonista, que se sente claramente desconfortável com o que faz (desde o prólogo), mas não consegue reprimir a atração que sente (vide o olhar para as nádegas do novo colega). É um ponto de vista bem diferente daquele de “Great freedom”, em que o protagonista é sujeito ao encarceramento (ao invés de encarcerar outrem) por práticas homossexuais similares.
Para além de empolgantes revelações ao final, o roteiro se torna diferenciado, ainda, na medida em que trabalha com duas linhas narrativas. No presente, Lucas está em uma festa de Ano Novo de sua mãe, ao passo que as questões do trabalho e o envolvimento com Andrew residem no pretérito diegético. O passado surge apenas porque o protagonista perde uma misteriosa carta que, por algum motivo, o faz lembrar do que viveu, circunstâncias que geram dúvidas como o quanto ele evoluiu no conflito pessoal e profissional e, é claro, do que trata essa carta. A narrativa, então, se torna fragmentada no tempo, o que não é confuso porque o diretor traduz graficamente as diferenças entre os momentos através da razão de aspecto e da barba de Lucas. A despeito da diferença entre as linhas cronológicas, há uma costura da narrativa que a torna relativamente linear, como quando Lucas, no pretérito, conversa com Em (Amy Forsyth) sobre falar com a mãe – outro conflito interno do protagonista – e, na cena seguinte, no presente, parece disposto a fazê-lo.
Outro diferencial consiste em imagens de baixa resolução, que tornam a montagem ainda mais fragmentada, consistente, em princípio, nas memórias de Lucas. Com o tempo, todavia, elas surgem como subjetividade mental e não cenas reais (por exemplo, quando Andrew aparece nessas imagens durante a cena do cinema). Na prática, a escolha pouco contribui na obra, pois são muito breves e esparsas, ainda que reforcem a montagem desmembrada e de cortes rápidos. A cena com a câmera no banheiro é exemplo de como a montagem acelerada contribui para a tensão e para transmitir a sensação angustiante do protagonista (e o paralelismo presente-passado na cena, colocando-o apreensivo em ambos, acentua ainda mais tal sentimento).
Em seu arco narrativo, Lucas não demonstra nada muito cativante; trata-se da jornada do gay reprimido que descobre um amor avassalador. A direção demonstra que a relação com Andrew não é apenas carnal tanto pela brevidade das cenas de interação sexual quanto, principalmente, pela ternura no trato corporal (por exemplo, quando Lucas está com sua calça abaixada e as nádegas lateralmente à mostra, a mão de Andrew faz carícias no local, outro exemplo é a posição em que ficam ao conversar na estufa). Russell Tovey faz com que Andrew não seja atraente para Lucas meramente como um objeto, pois o interesse gerado se deve ao ar calmo e compreensivo que constantemente emana (corroborado pela trilha musical romântica). O primeiro diálogo que trocam sai do óbvio; na cena da sala no cinema, a possibilidade de apenas conversar tranquiliza Lucas o suficiente para ir além. “À paisana” é, portanto, um romance comum, mas é também encantador graças às singularidades mencionadas.
* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.

