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“A VOZ DE DEUS” – O lugar de se perguntar o um [14º ODC]

Saindo da sessão de A VOZ DE DEUS, ponderando sobre os intentos do documentário que aborda a crescente realidade dos pregadores mirins, lembrei-me da noite em que vi Caetano Veloso, distante, minúsculo atrás de enormes andaimes, cantando um louvor, recebido com o mais absoluto silêncio pelas milhares de pessoas que o assistiam na Pedreira Paulo Leminski, em setembro do ano passado. O gesto que o novo longa de Miguel Antunes Ramos propunha, pareceu-me, era análogo, a saber, estender a mão para um universo apartado, estrambótico para quem não o habita, mas que é, inobstante, habitado por esses mesmos seres misteriosos que rodeiam qualquer um: gente.

Acompanhamos duas histórias, dois fenômenos da pregação mirim evangélica. O primeiro é Daniel, que o filme, realizado ao longo de uma década, acompanha desde a adolescência até os primeiros anos da vida adulta. O segundo é João, que conhecemos quando ainda pequeno, aos 7 anos de idade, e do qual nos despedimos no age da puberdade. A câmera de Ramos, que adentra o cotidiano doméstico desses garotos, é íntima, generosa, receptiva antes de mais nada. Trata o jovem Daniel e o pequeno João como garotos antes de os tratar como projetos de pastores. Não só como garotos, mas como garotos distintos, absolutamente diferentes. Não só diferentes, mas em diferentes momentos da vida.

(© Olhar de Cinema / Divulgação)

Seja por maturidade ou por personalidade, fica evidente que as palavras sacras significam muito mais para Daniel do que para João; aquele as invoca longe dos púlpitos como bússola dos dias, este como chacota meninil; um contesta a instrumentalização mercantil que o pai faz da fé, o outro perde a paciência com o pouco jeito do seu para com os negócios. Juntas, as imagens de Daniel e João ilustram que a realidade da pregação juvenil nada tem a ver com a pregação ou com a juventude, respectivamente.

Que isso não sugira que “A Voz de Deus” é um filme panfletário, porque não o ser, quando o ser seria fácil e tentador, é seu maior mérito. A pior escolha do filme é, inclusive, a de incluir breves e pobres inserts de cenas de manifestações e passeatas, contextualizando as eleições de Bolsonaro em 2018 e de Lula em 2022, as quais a narrativa atravessa. São aparentes momentos de fraqueza, que mais parecem uma formalidade protocolar em tempos de cinema-cartilha, perdidos em um filme outrora alheio aos planos que sublinham, às montagens que conduzem, alheio a certo cinema documental que teima em colocar a carroça na frente dos bois, o argumento na frente das imagens, os planos gerais (quase ausentes aqui) na frente dos médios, e esses na frente dos detalhes.

Que isso não sugira, também, que o que Ramos tem a oferecer é um filme apolítico. Nesse ponto, talvez em todos os pontos, tudo depende, é claro, da nossa relação com as palavras, do chamamos de política, do que chamamos de filme político. Eis o que eu chamo: na noite em que um velho amigo está a caminho para o assistir falar na igreja, Daniel, agora já morando com a esposa, recebe a notícia de que o sermão fora cancelado. O pai, inconformado com a oportunidade de empreendimento perdida, se irrita, e se vai. Daniel, meramente chateado, convence o amigo a ficar, a se sentar no chão, na frente do sofá, bater um papo qualquer, jogar uma ou duas partidas de FIFA, comer alguma coisa. Ali, já que estão todos muito bem vestidos e muito bem preparados para uma pregação, é o que fazem. Convencido pela lembrança que o amigo faz do Evangelho de Mateus (“onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”), Daniel prega. Não para a venda de seus DVDs, não para os olhos de estranhos, não para a satisfação do pai, não para angariar votos. Prega para a mulher e para o amigo que ama, como forma de amar – a forma que têm, a forma que sabem, a forma que creem. Me vem agora o complemento da lembrança: que naquele mesmo dia, na pedreira, uma hora antes, Caetano também cantou assim: “Gente olha pro céu / Gente quer saber o um / Gente é o lugar / De se perguntar o um” – essa, todo mundo cantou junto.

Ainda que não seja o exercício formal dos mais inspirados, a atenção e o interesse de Ramos e equipe compensam esse relativo desatino estético, e são suficientes para que momentos como o descrito anteriormente emerjam em “A Voz de Deus”. As cenas de pregação, por exemplo, são menos imagens da gritante e agressiva gesticulação de crianças-adultas-personagens, e mais a evaporação, ainda mais gritante, de infância, de fé, de genuinidade – a presença de seus pequenos corpos é a ausência de suas presenças, ali, como gente. Forte e duradouro é o plano final com o qual saímos da sala escura: João, o menor dos mirins, gargalha com amigos na fila para subir em um touro elétrico. Quando chega sua vez, surge um raro (talvez o único) zoom, e enquadra o garoto contra o céu. O touro cada vez mais feroz, seu corpo balançando cada vez mais agressivamente, fugindo e voltando para o enquadramento, se agitando para lá e para cá, tal qual chacoalhava seu corpo quando encarnava o artifício de um pregador nos palcos. Os frames por segundo e os olhos humanos já não dão conta, e o que era João torna-se agora um vulto incerto, pincelando a tela. Menino perdido, também como aquela estranha figura que regia e rege os cultos, possuída por tudo, menos por si.

* Filme assistido durante a cobertura da 14ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (14th Curitiba Int’l Film Festival).