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“ACRIMÔNIA” – Desconfiança e amargor

Recorrendo à etimologia da palavra, o substantivo comum ACRIMÔNIA, que intitula o filme homônimo, refere-se ao sabor acre, ou seja, amargo. O caminho tortuoso que o roteiro toma pode ser realmente amargo, sabor que não é do agrado de todas as pessoas, mas que tem seu público.

No longa, a protagonista Melinda é uma esposa fiel e trabalhadora, cansada de apoiar seu preguiçoso marido Robert, pedindo o divórcio quando ele perde o dinheiro da sua herança e a casa que era da sua falecida mãe. Quando ela descobre que ele enriqueceu e está noivo de outra mulher, decide se vingar com a justificativa que tudo que ele conseguiu foi graças a investimentos dela, que não teve retorno.

Há um acerto que, de plano, merece elogio: a escolha do cast. Ao invés de rejuvenescer artificialmente o elenco (o que, a rigor, seria possível e é feito em diversas produções), cada personagem recebe dois intérpretes, referentes às fases da vida (juventude e maturidade). Taraji P. Henson fica com o papel principal, sendo a responsável por uma Melinda madura que alterna essencialmente entre a fadiga e o rancor – explodindo apenas ao final. Henson vence na experiência, mas a jovem Ajiona Alexus não deixa a desejar, explorando a raiva perene da protagonista, sem olvidar uma fragilidade psicológica inicial. As duas são ótimas, ao contrário da artificial Crystle Stewart, enquanto Lyriq Bent é convincente como o Robert maduro (Antonio Madison o supera, contudo).

Inteligentemente, Tyler Perry dá uma justificativa bastante plausível para o uso de narração voice over em seu roteiro, que deixa de ser uma “muleta” para o texto, passando a agregar bastante no aspecto emocional da trama. Isso porque a narradora é a própria Melinda, na voz de Henson, que, com excelentes entonações vocais (que também fazem parte da atuação), dá vida à subjetividade mental explorada visualmente pela própria Henson ou por Alexus. É possível entender o sentimento a partir da interpretação pura e simples das atrizes, mas a narração dá muito mais riqueza a esse feeling.

Na direção, Perry adota ferramentas mais prosaicas para o mesmo fim de explorar os sentimentos de Melinda. Quando ela está sozinha, “digerindo” a própria raiva, é utilizada uma luz vermelha; quando ela fala com sua terapeuta (que sequer aparece), ela é filmada em contreplongée, com a câmera se aproximando dela, que fica quase em posição de autoridade perante o espectador. O cigarro é mais um recurso para sugerir a raiva, assim como o corte de cabelo de Henson (picotado) e o figurino (escuro e elegante). Na trilha musical, lindas canções de soul entoam a trama, incluindo a inigualável e melancólica Nina Simone. Embora “I put a spell on you” sirva, enquanto música intradiegética, para rasgar a impenetrabilidade emocional que a protagonista forja para si mesma, é “Please don’t let me be misunderstood” que, mesmo extradiegética, embala a trama com maior congruência.

No que se refere aos recursos estilísticos, o cineasta erra no uso de lentes grandes angulares e na inserção de palavras explicativas, que chegam a ser ofensivas ao público – é sempre melhor seguir a regra “show, don’t tell” (em tradução livre, “mostre, não conte”). Por outro lado, a imperfeição das personagens concebidas é atributo favorável à película, que, desse modo, permite ao espectador perceber a complexidade de cada uma delas. Melinda e Robert não constituem um casal perfeito, pelo contrário, o casal demonstra vários defeitos enquanto casal e enquanto indivíduos isolados – e o mesmo vale para os coadjuvantes.

O problema, contudo, acaba sendo o notório exagero do plot. Logo de início, Melinda anuncia uma injustiça que, na verdade, acaba sendo publicidade enganosa – ao menos em relação à intensidade que ela defende. A protagonista exagera a própria vitimização, o que é premissa do longa, mas não deixa de ser um exagero. Também as habilidades de perseguição que ela apresenta são questionáveis, ainda que tudo seja considerado uma metáfora para o descontrole gerado pela raiva – do qual qualquer um pode padecer.

O que acaba sendo mais interessante em “Acrimônia”, no aspecto temático, é a desconfiança. Melinda tem razão em ser perenemente desconfiada em relação ao marido? E ele, tem tão pouca credibilidade a ponto de precisar provar o que alega? Em uma miscelânea tumultuada de obsessão, rancor e ódio desenfreado, existe uma ideia com predicados, mas que poderia ser melhor desenvolvida.