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“AINDA TEMOS O AMANHÔ – O texto que desencontra a forma [FCI 2023]

É inegável o legado do Neorrealismo Italiano como representante dos espectros socioculturais de sua época. Pelo intermédio de uma nova proposta estética e sensorial, o movimento cinematográfico influenciou a maneira de se emparelhar a ficção e a realidade. Embora o teor político se fizesse fundamental, chamava a atenção como grandes cineastas emparelhavam o andamento estético de suas obras com a psique de suas personagens, exercitando influentes encontros entre o público e o privado. Inspirado pela roupagem geral dos filmes dessa época, AINDA TEMOS O AMANHÃ resgata essa mesma relevância na condução de seus assuntos, ainda que não consiga atualizar o ímpeto revolucionário dos exemplares neorrealistas.

Presa em sua rotina repetitiva, Delia se vê subjugada pelos seus papéis como esposa e mãe de três filhos. Incapaz de ir além de seus papéis sociais em plena Roma marcada pela Segunda Guerra Mundial, ela observa a vida amorosa de sua filha mais velha, Marcella (Romana Vergano), e auxilia o estado de saúde do sogro em seus momentos finais. Em meio a amores do passado e a complexidade do período em que se encontra, ela sonha com uma vida melhor.

Filmado em preto e branco, chama logo a atenção como a diretora Paola Cortellesi, que não por acaso também dá vida à protagonista, adota o filtro de uma narrativa antiga, especialmente por registrar os minutos iniciais em uma achatada janela de aspecto em 4:3. A casa humilde que divide com a família lembra os mais clássicos longas do movimento histórico, mas o aumento na forma de visualização, que logo passa a ocupar a tela inteira, deixa claro que não estamos vendo uma obra antiga.

(© Vision Distribution / Divulgação)

Por mais que as discussões específicas daquela época estejam presentes, não se demora a perceber o diálogo com a contemporaneidade. Incapaz de exercer a sua autonomia, Delia passa os dias com as suas amigas e desempenha tarefas domésticas, observando as ruas e a tensão herdada da guerra que acabou de os deixar. Por mais que isso reforce uma injusta marginalização dos papéis femininos da época, não se demora a ficar claro o grau de distinção entre ela o marido em suas vivências.

Reconhecendo rostos antigos e interagindo com soldados americanos da Guerra, sentindo as transformações que se desenham no ar, ela observa o cenário sociopolítico que a rodeia, distante do marido alheio, cuja maior parte do tempo se dá em sua própria casa, e atormentado por outros fantasmas do conflito internacional. Nesse processo fica evidente a violência que o mesmo nutre pela companheira, carcomido pela própria brutalidade de seus atos mas incapaz de superar tais feitos.

Em meio a esse contexto, cabe mencionar também os anacronismos que o longa adota em sua trajetória, especialmente na elaboração de sua trilha sonora. Pelo uso de diversos estilos musicais, o filme esclarece a sua filiação prioritária à personagem e seu estado social e psicológico, não preso pela precisão histórica ou demais formalidades. Esses radicalismos surgem inclusive para pontuar a crescente da libertação ansiada por Delia, que na antecipação ao direito feminino ao voto começa a vislumbrar pequenas mudanças em seus rótulos de vida.

Ainda que, aliado a esse último aspecto, as sequências de dança também se façam presentes de forma muito positiva – seja na irônica passagem em que o marido a agride, tomando para si um dos pouso refúgios que a protagonista encontra, ou nos momentos em que essa emancipação de traduz na potência dos corpos em movimento -, não são muitos os recursos de linguagem que dão continuidade ao clássico movimento italiano.

Seria injusto, por outro lado, assumir que o filme se propõe a tal feito, mas pela emulação de alguns de seus códigos tradicionais – mesmo que a ideia fosse, talvez, desconstruir esses recursos -, fica frágil a articulação geral das visualidades construídas pelo longa. A fotografia em preto e branco não transcende o esmero estético e a câmera em pouco acompanha o interessante poder libertário que o filme parece vislumbrar na dança, ou mesmo em demais ações de descompromisso.

É como se o argumentação bem fundamentada do projeto como um todo não tivesse uma proposta audiovisual a sua altura, pincelada em alguns dos seus pontos mais altos mas jamais fazendo jus a toda a riqueza de Delia e sua teia de relacionamentos.

Como um todo, “Ainda temos o amanhã” traz uma energética roupagem ao cinema italiano de pulsão social, por mais que deixe a desejar em seu estado linguístico. Independente de qualquer aspecto, há pouco que se compare a magnética sequência, movida por uma canção de Hip Hop dos anos 80, em que a protagonista corre, leve e solta, em direção as urnas da própria libertação, mistura que apenas a Sétima Arte poderia proporcionar.