“ALPHA” – A pior das escolhas [27 F.Rio]
Os gêneros cinematográficos podem proporcionar diferentes efeitos para os realizadores e para o público. O objetivo pode ser gerar respostas sensoriais específicas pela conjugação de imagem e som. A intenção pode ser trabalhar as convenções estabelecidas para discutir questões sociais e políticas de uma época. A diretora Julia Ducournau já fez isso anteriormente. Em “Raw“, o peso das heranças familiares é desenvolvido a partir da relação entre duas irmãs e do horror corporal suscitado pelo canibalismo. Em “Titane“, as identidades sexuais fluidas são tematizadas a partir de configurações inesperadas de família e novamente do horror corporal. Em ALPHA, a cineasta escolhe o terror de uma epidemia mortal. Que discussão temática ou estética propõe a partir daí? A pior entre tantas possibilidades sugeridas.

Além de dar título à produção, Alpha também é o nome de uma adolescente de 13 anos que vive com a mãe solteira. A realidade delas se transforma quando a jovem retorna de uma festa com uma tatuagem improvisada feita no braço através de uma agulha suja. O medo se instala porque muitas pessoas estão adoecendo com um vírus mortal. Além da preocupação de imaginar a filha contaminada e sofrendo com a violência na escola, a mulher também precisa cuidar do irmão dependente químico que está vivendo na mesma casa e pode ter alguma recaída a qualquer momento.
Contrair o vírus ou temer o risco da infecção são suficientes para disparar subtextos e relações metafóricas. Pode ser um paralelo com a pandemia do covid-19 em função do uso de máscara por alguns personagens e da sequência da superlotação de um hospital. Pode ser uma alusão à Aids, devido à paranoia dos colegas de escola de Alpha ao verem o sangramento de sua ferida no braço ou a angústia de uma protagonista virgem que acredita ser o sexo a única forma de contágio. Pode ser o ponto de partida para debater o bullying e a violência no colégio, exemplificados pelas cenas no banheiro e na piscina. Pode ser a premissa de uma história de amadurecimento centrada nas primeiras experiências sexuais e com drogas da jovem, indicadas nos primeiros minutos quando a narrativa apresenta uma sequência estilizada de uma festa em câmera lenta e trilha sonora carregada.
Porém, Julia Ducournau prefere centralizar a trama em torno da dependência química do tio da protagonista. Amin tem marcas pelo braço das agulhas injetadas e o consumo excessivo de drogas o faz sofrer com tremores pelo corpo. Em tese, a epidemia do vírus e o vício do homem seriam colocados lado a lado para abordar sua vulnerabilidade e o desprezo de outras pessoas que o consideram fraco por ceder a algo que, supostamente, dependeria apenas da sua vontade. Na prática, o conflito é repetido à exaustão sem maiores nuances: a dedicação irreparável de uma irmã que não desiste de cuidar de quem entra em atrito constante com ela, e os riscos emocionais ou da própria da saúde da sobrinha ao ficar próxima do tio. Haveria até a chance de trabalhar a desagregação e a recomposição familiar a partir de Amin, um tema caro à cineasta, se a ideia não se chocasse com a desperdiçada questão das tradições muçulmanas em um lar de imigrantes na França.
Faz falta à narrativa uma unidade formal que trabalhe a favor de tantos subtextos ou, pelo menos, da linha dramática principal. O flerte com a distopia no que se refere à imaginação de uma epidemia não passa de um adereço de pouca relevância no melodrama criado. O vírus que petrifica o corpo das pessoas contaminadas e converte sangue em areia não recebe uma atenção específica, então não possui uma lógica própria nem interfere muito no universo diegético. Nas cenas em que a câmera destaca os sintomas físicos, cria-se a contradição entre criticar o julgamento alheio e apresentar a doença como uma mera estranheza a ser contemplada. Além disso, a estrutura narrativa fragmentada em cronologias distintas contribui pouco. Trata-se de uma quebra cabeça para decifrar a ordem dos eventos ou uma estratégia de reafirmação do já dito na relação entre Alpha e Amin? Em nenhum dos casos, o saldo é positivo.
Em algumas passagens, as interações entre tio e sobrinha são construídas de maneira mais inspirada. Na abertura, uma sequência carregada emocionalmente é amenizada pela dimensão lúdica da inocência infantil. Amin está ao lado da criança Alpha e deixa ver os ferimentos no braço, ao que a menina reage ligando essas marcas com caneta (para deixá-las mais bonita) e se deliciando com a aparição de uma joaninha na mão do homem. Outro exemplo é a conexão entre o estado de saúde de ambos quando a mãe entra no quarto e os vê sofrendo com os mesmos tremores violentos. Os dois momentos são exceções, já que a maioria das sequências tem uma plasticidade vazia. Realçar os contrastes na iluminação, a montagem em paralelo, o fluxo cadenciado das ações e a trilha sonora chamativa parece mais importante do que os efeitos dramáticos. Tais sensações acompanham, principalmente, a sequência em que eles saem à noite pelas ruas e avançam por diferentes cenários porque cansa a repetição dos mesmos dramas e a afetação visual.
As possibilidades eram variadas de acordo com a apresentação do universo e com os projetos anteriores da diretora. Apesar disso, “Alpha” escolhe o pior dos caminhos e enfraquece as demais alternativas, todas elas mais ricas e capazes de levar a narrativa a um desenvolvimento menos óbvio. A cada nova cena, o filme não consegue sair do lugar ao mostrar a luta de Alpha e da mãe para salvar Amin de seus vícios e de um vírus mortal. Nesses momentos, Julia Ducournau pesa a mão em uma abordagem visual que se pretende muito autoral e pouco integrada à discussão colocada. Ao final, o resultado pode não ser o mais original ao fazer irmã e irmão repensarem sua relação e os esforços pela salvação, mas cabe para reconectar dramaticamente o vírus fictício e a dependência química. É um desfecho, inclusive, que produz uma planos interessantes em termos visuais, como a tempestade de areia em meio a uma rua deserta e o close em Alpha. Pena que não é um encerramento que faça esquecer as escolhas ruins anteriores.
*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).



