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“ANON” – Boas ideias na direção não sustentam um filme

O argumento de ANON, sci-fi original Netflix, é razoável, apesar de não ser original: no futuro, uma tecnologia ocular retira de todas as pessoas a privacidade, em prol da segurança social. Tudo muda quando uma hacker encontra uma falha no sistema, principalmente quando a polícia descobre assassinatos em série cometidos por ela.

Essa ideia de um futuro sem crimes vem do excelente “Minority report”, embora a lógica aqui seja distinta: no longa estrelado por Tom Cruise, os precogs são dotados de habilidades que lhes permitem alertar a polícia sobre um crime antes que ele ocorra; em “Anon”, diversamente, os olhos das pessoas têm uma tecnologia que torna potencialmente pública a visão de cada um, como se todos fossem acompanhados por câmeras a todo momento, acessíveis facilmente pela polícia, de modo que qualquer crime teria uma gravação in loco (seja pela visão do agente que cometeu o crime, seja pela visão de outras pessoas). Na prática, os olhos se tornam câmeras ultratecnológicas que não apenas gravam acontecimentos vistos como também permitem o compartilhamento das imagens. A ideia não é ruim.

Partindo dessa premissa, Andrew Niccol dirige a sua película de uma maneira bem particular, usando muita câmera subjetiva, através da qual é possível ver como o “Olho da Mente” funciona – engenhosamente, resume características do protagonista, um detetive, a partir da visão de um policial. Com inteligência e aproveitando o formato da televisão, a razão de aspecto muda a depender do ponto de vista: na ocularização subjetiva, a imagem é fullscreen; na ocularização objetiva, é widescreen com letterboxes horizontais (as faixas pretas em cima e embaixo da imagem). Também na ocularização subjetiva em diversos momentos o diretor usa rack focus, colocando a imagem vista pela personagem desfocada, ao fundo, para mostrar, à frente, imagens digitais do uso do Olho como um computador (por exemplo, acessando pastas para rever imagens pretéritas). Assim, é possível acessar imagens vistas até mesmo por um bebê, crianças jogam videogame apenas com os olhos e, principalmente, tudo que é visto tem registro, excluindo a privacidade.

O hackeamento entra justamente aí: se tudo que é visto fica registrado, algumas pessoas passam a ter interesse em apagar ou mesmo modificar esse registro. Para representar o algoritmo utilizado, aparece a sequência de Fibonacci, o que pode fazer sentido matemático, ao contrário das figuras geométricas aparentemente randômicas. No que é mais exigida, a computação gráfica deixa a desejar, como quando coloca uma arma nas mãos de uma personagem, parecendo um jogo. A direção se equivoca, ainda, em enquadramentos no apartamento do protagonista (a câmera quase no teto do local não faz sentido algum), além de haver pequenos erros na direção de fotografia quanto à iluminação.

O design de produção do longa é também questionável: em um futuro tão tecnológico, causa estranheza apenas os carros terem mudado, mas não o vestuário das pessoas, nem a arquitetura. A direção de arte cria ambientes fechados luxuosos e até bonitos, mas muito impessoais e genéricos, parecendo apartamentos decorados para venda do imóvel. O apartamento da hacker acerta nos elementos tidos como vintage na película, todavia permanece na impessoalidade. O exagero nas cores escuras e frias igualmente não se justifica, pois, ao menos até onde se sabe, as pessoas não mudaram nesse futuro, isto é, continuam tendo suas vidas como hoje, com a diferença que não têm privacidade.

Nesse sentido, a privacidade é a primeira temática do filme, o que é coerente com a era digital em que a sociedade vive, com o uso exacerbado de aparatos tecnológicos, possibilitando o monitoramento de tudo. Porém, em um segundo momento, surge uma nova temática, decorrente da primeira, referente à dependência humana da visão enquanto sentido – na ideia de que não se deve acreditar em tudo que é visto. A pulverização dos temas é danoso à crítica que o plot pretende efetuar, tornando-se raso. Isso sem contar a falha narrativa consistente na demora do protagonista em perceber o óbvio: ignorando a visão e dependendo apenas dos demais sentidos, teria uma vantagem sobre todos que o monitoram e/ou modificam o que ele vê.

Clive Owen interpreta o protagonista Sal no modo automático, jamais se esforçando para lhe dar contornos específicos. O histórico pessoal de Sal é restrito ao seu filho, subtrama sem grande utilidade e que apenas finge dar à personagem mais complexidade. A narrativa recebe caminhos tortuosos e parece perdida principalmente quando flerta com o gênero romance. Amanda Seyfried até se esforça para encarnar com seriedade o papel da hacker, mas a mera presença da atriz já indica o conteúdo da personagem – ou seja, foi um erro de escalação, não apenas da interpretação dela.

Com diálogos ruins (o discurso do comissário de polícia é vergonhoso), “Anon” tem boas ideias na direção, que, sozinhas, não sustentam o filme. No que dependia do roteiro, a produção erra muito mais que acerta. No saldo, é medíocre.