“APENAS COISAS BOAS” – A vida acima d’água [14º ODC]
Penso que é possível, talvez mesmo necessário, afirmar que, com APENAS COISAS BOAS debaixo do braço, Daniel Nolasco se firma como uma das grandes vozes do cinema brasileiro contemporâneo. Depois de ganhar atenção nacional e internacional com o “Mr. Leather” de 2019 e com o ótimo “Vento seco” no ano seguinte, Nolasco retorna em 2025 com seu segundo longa ficcional, expandindo o imaginário singular das homoafetividades apartadas no centro-oeste interiorano, que já se tornou sua marca temática registrada.

Estamos em Catalão, Goiás profundo, meados dos anos 80. Ali vive Antônio (Lucas Drummond), homem solitário em meio ao gado de sua singela fazenda, que certo dia encontra, acidentado na estrada, outro homem solitário, Marcelo (Liev Carlos), e sua motocicleta. Imediatamente se desejam, e logo se apaixonam. Ou são a mesma coisa? A atenção que Nolasco dá ao filmar seus corpos é idêntica quando os captura em abraços e em singelas carícias, ou quando os captura durante em transas. Na cena da primeira relação entre os dois, o sexo oral explícito, visual e temporalmente, não opera nunca na chave da ousadia – ainda que o sejam, se movem como se não fossem, fazendo com que a explicitude se sublime instantaneamente em natural, em beleza, em nada mais nem nada menos do que é.
É com isso que “Apenas coisas boas” mobiliza a primeira de suas penetrantes dinâmicas relacionais. A primeira é uma justaposição que engenhosamente funde estes homens com seus entornos, os arbustos pubianos e as plantações agrícolas, troncos de seiva e troncos de gozo, o leite que nutre o organismo e o que nutre o desejo, um verdadeiro estudo materialista dos movimentos, fluidos e formas que unem a natureza. As cores, os espaços e as coisas do campo goiano que Nolasco e seu fotógrafo Larry Machado figuram entre os mais inspirados planos de paisagem do cinema contemporâneo, absolutamente imperdíveis para entendermos também as cores, espaços e coisas do romance entre Antônio e Marcelo. Penso nos sertões desse mesmo Goiás em outro filme, no excelente “Oeste outra vez” de Erico Rassi, igualmente vocacionado para a captura da paisagem e para a articulação narrativa dos biomas.
A segunda, mais trágica, é a aglutinação das imagens da privacidade invadida. A fazenda de Antônio está sob constante ameaça do pai que quer expulsa-lo, que o despreza por sua sexualidade, essa “coisa que tem dentro” de si, como ele diz, assim como Marcelo é alvo da arma de um dos capangas que rodeiam a propriedade, cuja missão é livrar-se da “coisa”. Seu lar físico, seu lar afetivo, seu lar íntimo – tudo está em perigo, mas Antônio resiste. Até que perde, ou parece perder. Marcelo leva um tiro. Antônio o vinga, mata seu assassino. No lago em que costumavam nadar, ele encontra o amante boiando na água avermelhada ao seu redor. Tenta acorda-lo, em vão. E aí um desses planos mágicos: Antônio afunda o corpo de Marcelo na água, e mergulha junto. Lá ficam, os dois, por longos segundos, tão longos que as bolhas param de subir à superfície, tão longos que a as ondas se acalmam…até que emerge novamente Antônio (Fernando Libonati), seus cabelos brancos, embarrigado, rugas no rosto. No fundo das águas, décadas se passaram, como se passam outros anos e se transformam outros rostos na adjacência de outra morte quando Leonor Silveira toma o lugar de Cecile Sanz em “Vale Abraão”.
Desse clímax de meio de filme, “Apenas coisas boas” segue para um misterioso terço final, convictamente aberto, vago, por vezes abstrato. Incertos ficamos se Marcelo sobreviveu ao tiro naquele dia ou não, porque as cenas de Antônio nos dias atuais, sua natureza agora justaposta ao urbano, a dureza da cidade em que vive, giram em torno do sumiço de seu marido. Fato ou símbolo, o crepúsculo do protagonista que acompanhamos é uma nova mescla fluida, dessa vez de formas de perda. Morte, términos, separações, traições, fugas, assassinato, desaparecimento – independentemente do motivo, resulta a ausência de Marcelo, e Antônio, melancólico, vaga pelas matas, rodeado pelos homens anônimos que o estimulam por todos os lados, mas jamais completamente. E ele sonha, ou ouve, ou imagina, ou lembra: Marcelo lamentando o fim, relembrando os lindos anos que tiveram, juntos, no fundo das águas, Um filme que não vemos, que viveram sozinhos.

* Filme assistido durante a cobertura da 14ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (14th Curitiba Int’l Film Festival).