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“AS HERDEIRAS” – Do Paraguai para Berlim

Um filme com DNA paraguaio (a rigor, uma coprodução internacional) selecionado para competir pelo Urso de Ouro em Berlim no ano de 2018: é com essa respeitável credencial que AS HERDEIRAS chega ao circuito brasileiro. Trata-se de um filme corajoso e bem engajado pela temática acolhida, com uma direção autoral bem consciente, porém uma narrativa arrastada e exageradamente linear.

No centro da trama estão Chela e Chiquita, duas senhoras maduras, herdeiras de famílias ricas, que começam a perceber a dificuldade em gerir o patrimônio herdado e passam a vender seus bens. Em determinado momento, Chiquita é presa em razão das dívidas adquiridas (o que é legalmente previsto no Paraguai), deixando a parceira solitária. É nesse momento que Chela passa por novas experiências e adquire uma independência com a qual não estava acostumada.

O enredo pode parecer genérico, contudo não há muito a ser dito sobre o plot do longa. Ter como casal principal mulheres na fase da vida em que se encontram as duas simboliza tanto valentia quanto envolvimento com uma pauta humanista bem contemporânea. A valentia se refere a um posicionamento ideológico que exclui uma parcela do público, o envolvimento consiste tanto na homoafetividade quanto no protagonismo feminino.

Isso porque o diretor e roteirista Marcelo Martinessi faz questão de colocar os holofotes nas mulheres – Chela em especial, que vai adquirindo o protagonismo cada vez mais. Do ponto de vista técnico, o inexperiente cineasta adota um estilo particular e, de certa forma, arriscado, já que implica redução da exposição do campo. Quase sempre há pouca profundidade de campo e filmagem em over the shoulder, de modo que a protagonista é destaque na maior parte das vezes em que aparece, como se fosse um ímã. Com isso, Martinessi é minimalista nos cortes e nas movimentações de câmera, tendo como resultado muitos elementos da cena no fora-de-campo – isto é, muitos objetos ou mesmo pessoas que participam da cena não aparecem por completo (por exemplo, apenas o corpo), o que é reiterado. Movimentos de câmera, como panorâmica, são bastante raros (e normalmente ocorrem para acompanhar o deslocamento de Chela), o que gera o risco do desconforto do espectador. O estilo, porém, serve para deixar bem claro que a película segue Chela de perto (literalmente).

Do ponto de vista sonoro, também o trabalho é de um estilo marcante: a trilha musical é extremamente diminuta, fazendo-se presente em momentos muito pontuais. Por outro lado, a edição de som é maciçamente exibida, explorando de maneira intensa, em especial, os objetos de cena  – como televisão, secador, toalha e até o piso da casa em que o casal principal mora. O rangido do piso, por sinal, é um indício da idade da residência (assim como a marca de quadro retirado da parede e mesmo a iluminação discreta), porém, metaforicamente, também é símbolo do envelhecimento e da decadência da vida até então levada por Chela.

Inicialmente, Chiquita é forte e não sofre ao ser presa, enquanto Chela é seu oposto. Margarita Irún faz um bom trabalho ao expressar a segurança que Chiquita esbanja, relacionando-se facilmente com as demais detentas e aceitando com tranquilidade o cárcere. Entretanto, é Ana Brun o grande destaque ao imprimir a miríade de sentimentos pelos quais Chela passa. A timidez inicial comprova que, na verdade, a protagonista tinha uma insatisfação latente, um anseio por uma liberdade selvagem que a vida de pintora recolhida e introspectiva não permitia. Com coerência, não ocorre uma transformação completa: Chela se revela uma mulher ávida por novas emoções e sensações, no seu ritmo e à sua maneira. Uma atitude modesta como dar carona a uma vizinha dá ensejo a uma nova atividade, de certa forma, profissional, da qual ela, sem perceber, retira uma satisfação inimaginável. Da mesma forma, conhecer novas pessoas lhe é benéfico, ainda que disso resultem sentimentos sobre os quais ela se sente insegura.

É quando entra em cena Angy, interpretada pela eficiente Ana Ivanova. A proposta do longa é fazer de Angy uma mulher um pouco enigmática e muito provocadora, o que de fato é visto em uma sequência. Contudo, ela merecia, talvez, uma participação maior, justamente porque o roteiro não é de fortes emoções. Salvo nesse momento, “As herdeiras” não é capaz de fornecer ao espectador uma satisfatória potência sentimental. Isto é, praticamente inexiste um momento memorável e que, principalmente, faça com que o público seja dominado pelas emoções provocadas. O ritmo é lento, o texto é alongado desnecessariamente e, se não fosse por Angy, seria uma película insossa, a despeito de sua interessante protagonista. Não se trata de um filme óbvio (pelo contrário, é composto de sutilezas) nem genérico, cuja falta de vigor na execução (o que não falta na concepção) do roteiro é prejudicial como obra finalizada, apesar da elogiável direção.