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“BIRD BOX” – Covardemente formulaico

Quando “Ensaio sobre a cegueira” encontra “Um lugar silencioso”, o resultado é BIRD BOX, filme original Netflix que executa mal uma ótima ideia inicial. Sem o brilhantismo do primeiro e a impecabilidade técnica do segundo, o thriller não impressiona, mas serve como reencontro de uma fórmula já bem conhecida do público.

A protagonista do longa é Malorie, uma mulher que, juntamente de duas crianças, tenta sobreviver em um futuro apocalíptico no qual a visão pode ser fatal. Nessa realidade, houve uma epidemia de suicídios praticados por pessoas que têm contato visual com criaturas misteriosas. Entendendo que não pode ver as criaturas, Malorie e as crianças vendam seus olhos e tentam ir a um lugar seguro. Seu desafio é justamente se locomover com o perigo à espreita e sem poder ver nada.

Cartaz de “Bird box

Sem dúvida, a ideia é muito boa, ainda que não completamente original. Em termos cinematográficos, da mesma forma, a proposta é interessantíssima: por vezes, a diretora Susanne Bier entrega ao espectador o que as personagens não puderam ver, outras vezes, usa câmera subjetiva para dar ao espectador a mesma visão das personagens vendadas (ou seja, enxergam a própria venda e levíssimos contornos de silhuetas quando há luz).

O grande problema, todavia, acaba sendo o frágil roteiro de Eric Heisserer – mesmo roteirista de, por exemplo, “Quando as luzes se apagam” e “A chegada”. Dessa vez, Heisserer não foi tão feliz no desenvolvimento narrativo – e, como se sabe, um bom script não depende apenas de uma ideia criativa. O filme se passa em pouco mais de cinco anos, tendo sido dividida a narrativa em duas linhas temporais – na prática, do começo do perigo até o encerramento do arco dramático da protagonista. Embora Malorie seja uma personalidade forte, algo explicado na sua criação como filha de um cowboy, não fica claro o seu backstory: seu jeito frio e racional é resultado de um trauma afetivo? O que fez com que a maternidade fosse tão espinhosa para ela (considerando a falta de empolgação para dar à luz e o distanciamento em relação à própria mãe)?

Preocupado em escancarar o desdém de Malorie em relação à própria gravidez, ao plot é adicionada uma personagem, Olympia (Danielle Macdonald, que está bem no papel), cuja função narrativa mais relevante ocorre nos momentos finais, sem a sua presença em tela. No papel principal, Sandra Bullock faz de Malorie uma personagem convincente em razão da sua interpretação, não graças ao que o texto fornece. Parecendo despida de sentimentos, Malorie se revela no transcorrer da trama uma mulher bastante altruísta, de modo que Bullock é eficiente nas duas formas.

Além de ausente o backstory de Malorie (e o das demais personagens, evidentemente) o roteiro é repleto de pontas soltas e superficialidades, carência que não é suprida pelo subtexto porque o texto em si é formulaico – considerando ser “Bird box” um filme apocalíptico. Todos os clichês do estilo estão lá: do altruísmo à traição, do sacrifício voluntário aos riscos não concretizados e da empatia à antipatia. Existem personagens importantes enquanto contraponto (como Douglas), mas também personagens sem grande utilidade – aliás, é irônico inserir à força uma personagem (Gary, vivido por Tom Hollander) para resolver um problema criado pelo próprio roteiro, que foi o excesso de personagens. Entre mortes subsequentes, símbolos vagos (o pingente que Malorie ganha no final é um dos elementos sem explicação) e coincidências inexplicáveis (dois partos no mesmo momento!?), o ponto alto da narrativa é um momento “A escolha de Sofia”: mesmo não sendo original, imprime tensão. A falta de explicação nem sempre é um problema. Em “Bird box”, porém, a expressão “purificar o mundo” acaba sendo vazia na medida em que não se explica o seu significado.

Há uma tentativa de injetar um subtexto denso à trama, contudo não há êxito. Por exemplo, quando Tom (Trevante Rhodes, em seu melhor papel desde “Moonlight: sob a luz do luar”) fala com Malorie sobre a diferença entre viver e sobreviver, a solução do conflito entre os dois é simplista. Lil Rel Howery (um elenco bastante diversificado, frise-se) faz de Charlie um mero alívio cômico, já que, mesmo quando suas falas tentam ser construtivas, na prática, são inócuas. John Malkovich, ótimo, como de costume, interpreta uma personagem de camadas complexas (talvez até mais que a própria Malorie): Douglas é um homem egoísta, áspero e rancoroso capaz de afirmar que “só há dois tipos de pessoas: os escrotos e os mortos” (assumindo, portanto, a sua boçalidade), porém faz sentido que ele seja assim em razão do que viveu em um passado distante e, principalmente, no passado recente – e descontar no álcool também é coerente.

Susanne Bier foi para uma direção oposta na sua carreira: acostumada com dramas (“Serena”) e romances (“Amor é tudo o que você precisa”), a transição para o terror é bem melhor do que normalmente se esperaria. Um elemento positivo do seu trabalho é a aflição compartilhada, quando coloca o espectador na mesma cegueira das personagens (como na excelente cena do carro). Fiel à proposta, a fotografia usa uma paleta de cores escuras e foscas, não exagerando em nenhum aspecto. Há cenas com uma tensão real (como a da luta no rio), entretanto o roteiro é covardemente formulaico, o que resulta em um filme meramente ordinário.