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“BIXA TRAVESTY” – Um grito alto (demais)

Em 1974, Ney Matogrosso saiu do grupo “Secos & Molhados” para, no ano seguinte, lançar seu primeiro álbum solo, “Água do céu – pássaro”. Ney foi precursor no casamento entre arte, masculinidade e sexualidade; um casamento a três, coerente para seu perfil transgressor. Seguindo essa mesma corrente está Linn da Quebrada, protagonista de BIXA TRAVESTY.

Linn da Quebrada é uma cantora e compositora transexual negra e ativista pelos direitos da comunidade LGBTQIA+. No documentário, sua vida pessoal e a particular são expostas para revelar quem é essa artista que ama desconstruir.

Cartaz de “Bixa travesty

Em determinado momento do filme, ela afirma: “agora eu sou mulher, sim. Sou a nova Eva: filha das ‘travas’ (sic), obra das trevas”. Uma fala forte dita por alguém que não quer se encaixar em quaisquer estereótipos. Binariedade de gênero, conceito de feminilidade e outras ideias caem por terra. Linn da Quebrada não é homossexual, não é travesti. É “bixa travesty”, um espaço criado por ela mesma para existir. Pois é isso que ela quer, antes de tudo, simplesmente existir. Nada a impede de sair desse espaço e ocupar outro, se isso for da sua própria vontade. E faz todo o sentido, pois ela não é nem consegue ser estática.

Trata-se de uma artista multifacetada, que se encontrou no funk porque o gênero musical é o que mais se aproxima da desconstrução e do despudor que ela procura. Sua arte implica despudor; sua música, um discurso combativo desbocado. É essa a sua arma para desconstruir tudo que a rodeia, inclusive a si mesma. Apenas o funk concede às mulheres um espaço para falar sobre tabus como sexo e a toxicidade do heteronormativismo, de modo que os diretores Kiko Goifman e Claudia Priscilla colocam no documentário trechos dos shows de Linn.

Nessas shows, ela se divide entre o sexual e o militante, entre gemidos altos e gritos de “fora, machistas!”. Tudo é sempre explícito, sem censura alguma. Não há espaço para ocultar nada, a cantora se exibe por inteira, da glande pintada com batom ao ânus sendo limpo (e mostrado bem de perto) durante o banho – preferencialmente tomado com outra pessoa. Como um invólucro, seu corpo é uma casca que se abre e aparece para quem quiser ver e, quem sabe, conhecer um pouco do que há ali dentro.

Em algumas canções, o microfone é compartilhado com Jup do Bairro, que faz backing vocal, mas também diálogos com Linn. As músicas usam intensa percussão e são influenciadas pelo samba e pelo rap, porque sua arte não entra em um simples rótulo. Assim como ela não entra. A música é arma, mas também o são seu corpo e sua existência. Ela é alguém que luta até mesmo por (e para) ser quem é.

Linn da Quebrada afirma que só existem dois tipos de pessoas: as que a desejam e as que ainda não a conhecem. Quando se recorda do passado, reconhece Lino como “bobinho” e “ingênuo”, percebendo o quanto evoluiu desde a adolescência. Ela percebe que se tornou mais do que uma artista política que rompeu barreiras, mas uma pessoa política, alguém que se ama e se admira – com doses grandes de narcisismo, como inúmeros outros artistas.

O documentário performático percebe o quão particular é Linn, usando de artifícios variados, como a quebra da quarta parede (a simulação de um programa de rádio é uma ferramenta interessante como metalinguagem comunicativa), a narração voice over e os excertos dos shows. Nem sempre, todavia, eles dão certo. Por exemplo, quando ela ameaça os homens a “aprender suas técnicas e aprimorá-las”, a acidez da fala não ganha tom ameaçador em razão da sua voz tranquila e da sua expressão serena (quase parecendo outra pessoa, quando comparada à postura dos shows).

Esse é apenas um dos problemas do filme, que é roteirizado pela própria Linn, juntamente com os diretores. Há um elemento relevante simbólica e estruturalmente que é negligenciado no filme, a luva que um dia foi usada por Ney Matogrosso. O objeto é apresentado como um amuleto, mas acaba sumindo. Quando reaparece, é apenas para o espectador, deixando um enorme vazio quanto à sua reação ao revê-lo. Não obstante, na virada dramática, o filme cresce consideravelmente e dá novas camadas à sua já complexa estrela.

A inspiração em Ney é a melhor possível, de modo que ele e Linn têm sua representatividade artística (guardadas, é claro, as devidas proporções). Entretanto, há que se reconhecer que a via adotada é crua demais para chegar ao grande público. O Brasil é um país cujo parâmetro de censura etária é mais voltado à nudez do que à violência, por exemplo. Ainda que seja socialmente benéfica a reflexão trazida por Linn no documentário (performático na forma, reflexivo no conteúdo), um grito tão alto pode não ser bem escutado. Se é preciso desconstruir estereótipos de gênero como “menino veste azul e menina veste rosa”, talvez chocar a plateia mais pudica não seja o melhor caminho. Afinal, não é quem corrobora o pensamento de Linn que precisa ouvir sua mensagem.