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“BUSCANDO…” – Um suspense da modernidade líquida

Mesmo apontando equívocos em BUSCANDO…, não é possível negar que o filme traduz o Zeitgeist de um mundo tão mergulhado em realidade virtual que o empírico é deixado de lado. É difícil, inclusive, um suspense tão conectado (literalmente) – em termos de gêneros cinematográficos, as maiores atualizações não estão no suspense.

No longa, o protagonista David Kim (interpretado por um satisfatório John Cho) é um homem cuja vida é abalada após o enigmático sumiço de sua filha adolescente, Margot. Não obtendo respostas satisfatórias da investigação das autoridades, ele resolve procurá-la sozinho através de vestígios deixados no computador da moça.

Embora a premissa seja próxima à de “Busca implacável”, as semelhanças residem muito mais nos nomes brasileiros – que possuem a mesma semântica, na ideia segundo a qual um pai se esforça para encontrar sua filha desaparecida – do que no gênero cinematográfico. Nesse ponto de vista, “Buscando…” está próximo de “Os suspeitos” enquanto suspense, todavia sua preocupação não é na tensão, mas no retrato da contemporaneidade.

O filme é bom quando se atém à cartilha dos filmes de suspense: sem deixar pontas soltas (até mesmo a chuva tem função dentro da narrativa), é construído a partir de red herrings (um rastro enganoso que chama a atenção do espectador na direção errada) e uma aparentemente insignificante “arma de Chekhov” (elemento que aparece em um momento e se repete posteriormente, no objetivo de manter a coerência estrutural da trama, evitando ingredientes sem utilidade ou deus ex machina). No final, a solução acaba sendo bastante óbvia para o espectador cujo olhar é mais apurado e que está mais atento a esses recursos de roteiro, porém sua explicação completa é mais difícil de decifrar (ainda que seja um pouco frágil).

Por outro lado, os roteiristas Aneesh Chaganty e Sev Ohanian não souberam lidar com um drama familiar que surge nos primeiros minutos, mas que quase não é explorado além da obviedade. Isto é, embora a vida do protagonista tenha uma tristeza nos primeiros minutos, seu sofrimento é renegado a segundo plano, de modo que, se o filme não tivesse a longa introdução que possui, não haveria prejuízo substancial. O resultado é um terço inicial lento e sem conflito aparente. Os poucos diálogos são muitas vezes supérfluos (para não dizer estúpidos, como quando o irmão de David qualifica o sumiço da filha deste como um fato “estranho, muito estranho”), porém não se pode negar que o enigma criado consegue ser instigante.

O maior mérito para isso está na abordagem de uma realidade extremamente palpável, qual seja, a de uma modernidade líquida em que as pessoas dependem em demasia do mundo virtual, a ponto de lá vivem uma vida paralela, relegando ao mundo real um papel secundário de relações humanas efêmeras e superficiais. Prepondera o individualismo a ponto de, na trama, um pai admitir que conhece pouquíssimo da vida de sua filha – resultado, evidentemente, da fluidez dos laços afetivos (os familiares não são exceção), que constituem um amor líquido (volúvel, momentâneo e com mesmo valor que as conexões virtuais).

É verdade que há algo positivo disso tudo, como o poder construtivo das redes sociais, que são capazes de impulsionar uma causa nobre (por exemplo, através de hashtags). Entretanto, elas constituem uma selva em que, igualmente, a sordidez humana – o lado sombrio da sociedade líquida – encontra amparo. As duas faces dessa moeda não foram ignoradas pelo filme, que é muito bom nesse quesito.

Na direção, Chaganty estreia como um cineasta bastante ousado – e, a depender do público, excessivamente ousado. Todo o filme é assistido como se o espectador residisse no mundo virtual e assistisse aos eventos da película do ponto de vista de um computador. Há um quê de voyeurista enaltecido, além de uma metalinguagem inusitada: a câmera não adota um olhar objetivo e alheio à diegese (ocularização objetiva, na terminologia de Jost), tampouco acolhe a perspectiva subjetiva (ocularização subjetiva), mas se coloca em um meio-termo, já que a maior parte da ação é enxergada através da tela do computador usado pelo protagonista.

Em outras palavras, é como se o espectador estivesse dentro do computador, acompanhando os atos de David através da sua webcam, mesmo quando ela não é usada. Essa inserção diegética se torna problemática, contudo, quando ele sai do computador, por exemplo ao dirigir, quando a saída encontrada não apresenta a coesão necessária. Também em outros momentos, em geral, na segunda metade da película, não faz sentido algum – ao menos dentro da técnica adotada – mostrar reportagens da investigação, tendo em vista que nem sempre é o que David está vendo. Se a ideia fosse colocar a câmera como um terceiro, integrante da diegese, mas alheio à trama, a cena que se passa no apartamento do irmão do protagonista seria descabida em razão da onipresença desse terceiro.

Em síntese, o ponto de vista adotado é o da realidade virtual, usando diversas “muletas” para permitir onisciência e onipresença do público sem prejuízo da própria técnica. Se colocar uma tela dentro da tela de cinema não for um incômodo (embora seja potencialmente claustrofóbico ou, no mínimo, angustiante), a experiência não será afetada pela metodologia adotada – o que é provável em tempos em que o mundo é constantemente visto através de uma tela como intermediária.