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“CLOUD” – Outro fim do mundo [14º ODC]

Kiyoshi Kurosawa faz filmes de fantasma há pelo menos 30 anos. O mesmo filme de fantasma há pelo menos 30 anos. O mesmo filme, porque seguimos assombrados pelos mesmos fantasmas. Os seus fantasmas fomos nós que criamos, como os cria Kiyoshi, ainda magistralmente, em seus filmes. São invisíveis, vivem em vácuos, amassados em conturbados espaços pequenos ou tornados ínfimos por enormes espaços vazios. São homens, nem bons nem maus, como fez questão de afirmar Kurosawa no vídeo enviado por ele e exibido antes de seu novo filme, CLOUD, na sessão de abertura do 14º Olhar de Cinema.

Ryôsuke Yoshii (Masaki Suda) é um deles. É um trabalhador de chão de fábrica, que se recusa repetidas vezes a aceitar um cargo mais elevado, para a decepção e incompreensão de seu chefe. Nas horas vagas, é um revendedor de mercadorias online, que explora e engana seus clientes cobrando valores abusivos por produtos obtidos sorrateiramente, ou passando falsificados por originais. Cansado de “receber ordens”, como diz a sua companheira Akiko (Kotone Furukawa), se muda com ela para uma casa isolada, em meio a montanhas, onde monta um pequeno depósito, um mínimo escritório, e passa a dedicar-se exclusivamente a identificar oportunidades: comprar coisas e revender coisas, comprar outras coisas e revender outras coisas.

(© O2 Play / Divulgação)

A casa é decorada com caixas fechadas, pintada com o tom pastel das encomendas. Não com a cor dos produtos, mas a cor da produção. Ryôsuke compra para vender, mas não compra nada para si, ora pela falta de lucro, ora pelo impulso de investir em uma nova oportunidade. Na casa há uma máquina de espresso com defeito, que com defeito segue, e jamais é substituída. Ryôsuke precisa de um carro, então pede emprestado para outra pessoa que empresta de uma terceira. Ryôsuke quer dinheiro para ter mais dinheiro. Frontalidade e literalidade de símbolos e de metáforas; abraçar sem receios as potencias do filme de gênero, da narrativa clássica – outras coisas que Kiyoshi vem fazendo há 30 anos, e que há 30 (e há 130) anos não envelhecem quando mobilizadas por quem sabe seus segredos e suas grandezas.

No meio do 2º ato de “Cloud“, Kurosawa filma o seguinte plano: a câmera gira pacientemente em torno de Yoshii na bancada da cozinha, mas cessa quando encontra os olhos de seu objeto. Seu protagonista olha para a lente por alguns segundos, e a câmera novamente se move para a lateral enquanto Yoshii se encaminha para sala. Ali descobrimos que o que ele encarava era a tela do computador, exibindo a página de venda de seus produtos. É dessas quebras de quarta parede, se é que podemos chegar a chamar assim o plano, que resguarda uma infinidade de associações: encarados por Yoshii, somos seus “clientes”, suas vítimas anônimas, portanto os fantasmas que logo o assombrarão; e nos encarando, Yoshii é nossa assombração, nosso carrasco; mas encarados pelo revendedor somos também seu público, um outro tipo de entidade invisível, segura de seus golpes; e Masaki Suda é nossa projeção, nossa imagem, nosso passado, presente e futuro, nossa sina. Entre nossos olhos e os dele, as nuvens do mistério. Uma das perguntas essenciais do cinema é a pergunta essencial do cinema de Kurosawa: quem (o que) é que somos se pudermos não ser vistos?

É no confronto concreto entre anônimos que consiste o clímax de “Cloud”, horror da maior ordem para Yoshii. Uma de suas vítimas o ataca mascarado. É o mais jovem do grupo. Ainda não sabe, o que sabem os outros, que não precisa esconder seu rosto porque já é morto, já é fantasma, seu destino o precede. Os tiros que matam numerosos homens sem nome ecoam demoradamente pelo vazio de um enorme galpão, outro desses símbolos perturbadores do capital tardio. Atiram no nada, em homens-nada, em insignificantes peões da máquina que gira e que substitui suas engrenagens quebradas num piscar de olhos, enquanto cafeteiras seguem quebradas, e as substitutas, se é que chegam, embaladas nos cubos-pastel da casa de Yoshii, chegam falsificadas, superfaturadas, ou programadas para um novo defeito – seus destinos também as precedem.

E aí seguem, Yoshii e seu fiel, exemplar e proativo funcionário Sano (Daiken Okudaira), um herói improvável, que tudo faz e tudo fará para comprar e vender. “Você pode ter tudo que quiser, mesmo se for algo que possa destruir o mundo”, ele diz ao chefe. O plano final – patrão e assistente no carro, dirigindo em direção a um emaranhado de nuvens, de cores estranhas – nos lembra tantos outros finais de Kurosawa, da queda do avião de “Pulse” à invasão alienígena em chroma-key de “Before We Vanish”. São essas estranhas surrealidades patentemente reais, esses apocalipses já presentes, essas tragédias em andamento, há pelo menos 30 anos.

* Filme assistido durante a cobertura da 14ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (14th Curitiba Int’l Film Festival).