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“COLETTE” – Técnica e semântica

Cinebiografias sempre encaram um desafio especial: condensar um número imenso de eventos sem perder a dramaticidade e o sentido em razão das necessárias exclusões. No caso de COLETTE, a tarefa não foi bem cumprida – não tanto do ponto de vista narrativo, mas no aspecto temático.

O filme é um drama biográfico centrado na vida de Gabrielle Colette, uma aspirante a escritora que encontra, em seu relacionamento abusivo, barreiras para concretizar seus sonhos. Assim, além dos obstáculos que naturalmente enfrentaria por ser mulher no fim do século XIX, ela precisa lidar com um marido que a trata como objeto.

Cartaz de “Colette

Inquestionavelmente, o papel da protagonista é bastante rico, tendo sido acertada a escolha da subaproveitada Keira Knightley como Colette. A dificuldade do papel não é tanto a cronologia, já que o período em que a história se passa não é tão extenso. O que Knightley precisa lidar e que lhe impõe esforço é transformar a interpretação de dentro para fora, no início, em uma interpretação de fora para dentro, no fim. Na primeira metade, Colette é uma menina que já demonstrava nuances de uma personalidade forte (e o encontro escondido no início é ato de uma rebeldia inesperada), porém não tem, ainda, a segurança necessária para traçar o próprio caminho (chega a afirmar que o marido viu algo diferente nela, mas não afirma o que seria). Há momentos em que ela sugere não ser inofensiva (como quando diz que “os dias de selvageria estão só começando”), contudo não tem a força necessária para enfrentar seu marido.

Interpretado por Dominic West (que já tem um piloto automático para atuar em papéis de cafajestes, embora dessa vez não se enquadre como o sedutor irresistível de outrora), Willy, marido de Colette, é o típicho “macho alfa” que gosta de parecer cheio de si, mas que no fundo é um poço de fragilidade. Quando ele limita a esposa (seja por ações, seja cerceando a liberdade desta), apenas revela insegurança e egoísmo, características contra as quais Colette demora para se insurgir. Quando o faz, na segunda metade do longa, ela já é uma mulher consciente de si e com coragem suficiente para fazer o que quer sem se importar com a opinião alheia. É por isso que, na primeira parte, ela aparenta vulnerabilidade, reduzindo o tom de voz e medindo as suas palavras (interpretação de dentro para fora), enquanto que, na segunda, consegue falar mais, no sentido quantitativo e no qualitativo (interpretação de fora para dentro). Assim, por exemplo, sua resposta ao discurso machista de Willy é crescente: primeiro, reage quase que de forma acrítica (mesmo que não deixe de reagir) quando ele diz que homens são fracos por natureza e que não conseguem ser monogâmicos, posteriormente, quando ele admite para ela que infidelidade é matéria de gênero, sua postura já é dotada de criticismo, preparando-se para um enfrentamento posterior.

Do ponto de vista estético, Wash Westmoreland apresenta uma direção singela. Quando Colette está em sua zona de conforto (sozinha ou em casa, normalmente), usa figurino de cores claras (em especial tons de baunilha); quando vai a um evento social, o vestuário é sempre preto, como uma revolta silenciosa. Ainda no figurino, o estilo se torna menos feminino (considerando a época, frise-se) no decorrer da narrativa, como gravatas e paletós. No penteado, para enfatizar o amadurecimento da protagonista e a prisão na qual ela se encontra no casamento, as tranças soltas no ombro dão lugar a um cabelo preso. A trilha musical é óbvia e exagerada, enquanto a divisão do quadro a partir de elementos diegéticos (simulando split screen) é um dos poucos bons atributos do longa. Outro problema da direção é o ritmo: os momentos dramáticos têm pouco impacto, já que tudo acontece tão rápido, com mudanças tão bruscas, que personagens e público não conseguem sentir as emoções que poderiam surgir dos eventos (um simples diálogo, por exemplo, é capaz de levar a um perdão que parecia impossível).

Não obstante, os maiores defeitos estão no roteiro de Richard Glatzer, que assina o script juntamente com o diretor Westmoreland. Tanto o casamento de Colette e Willy quanto a escrita da primeira são assuntos que conduzem a narrativa com igual importância, porém as fases pelas quais ela passa não são aprofundadas. A título exemplificativo, com menos de meia hora de filme o casal já está reconstruindo o seu casamento, o que é visivelmente precoce. Ainda mais grave, no aspecto temático, o filme é um descalabro: parecendo sofrer uma crise existencial, não fica claro se o plot está engajado tematicamente com relacionamentos afetivos, feminismo, homoafetividade, transexualidade ou literatura. Todas essas espinhosas matérias permeiam a narrativa, porém ela se torna superficial ao querer abordar muito em uma obra inevitavelmente limitada (não seria exagero imaginar que o resultado seria melhor em formato de minissérie). Como resultado, “Colette” é um filme tecnicamente ordinário e semanticamente raso. Um verdadeiro desperdício de uma biografia bem interessante.