“CYCLONE” – Restituição de uma história [27 F.Rio]
Maria de Lourdes Castro Pontes foi uma artistas do Modernismo brasileiro da década de 1920, que foi apagada pelo machismo estrutural da sociedade por ter sido considerada apenas amante de Oswald de Andrade. De origem popular, ela sofreu diferentes formas de preconceito e um processo de apagamento histórico. Em CYCLONE, título do filme que aproveita o apelido mais conhecido da autora, a história dela é ficcionalizada para fazer uma reconstrução de sua trajetória de vida e de trabalho.

Em São Paulo no ano de 1919, Cyclone desafia todas as regras sociais para estudar teatro em Paris. Ela é uma jovem operária e dramaturga, que escreve peças com o diretor Heitor Gamba (com que mantém um romance secreto), mas não tem reconhecimento pelo seu trabalho. Quando descobre a possibilidade de conquistar uma bolsa de estudo na França, o maior obstáculo para alcançar seu sonho é viver em um mundo onde as mulheres não são livres para seguir seus desejos.
De início, a grande dificuldade da protagonista tem ligação com o machismo e as desigualdades de classe. A obra articula muito bem os impeditivos para ser reconhecida e viver da arte. Em termos textuais, é possível notar os sofrimentos de dividir a rotina entre o trabalho em uma fábrica e a criação das peças, fazendo com que suas carências materiais sejam perceptíveis (como é o exemplo de sua casa). Visualmente, as diferenças sociais podem ser verificadas nos planos detalhes de suas mãos enquanto escreve para enfocar as unhas sujas, devido ao ofício regular em uma tipografia. E a desvalorização das mulheres aparece, sobretudo pelo fato de não poder assinar a autoria dos roteiros. Na mentalidade vigente, não seria uma atividade que caberia a elas. Então, os homens receberam os méritos por algo que não fizeram ou criaram em parceria. Nesse ponto, o Heitor de Eduardo Moscovis parece ser amoroso e solidário à situação de Cyclone, porém se aproveita do machismo em última instância de forma consciente.
As barreiras para a concretização do sonho profissional se multiplicam ao longo da narrativa. Além de discutir temas como patriarcalismo, independência financeira feminina e desigualdades de classe, o roteiro também aborda os direitos reprodutivos das mulheres. A protagonista engravida de Heitor enquanto buscava o dinheiro para pagar os custos da viagem e a comprovação de sua participação na escrita das peças. A partir daí, a discussão engloba a questão do aborto: a gravidez indesejada com um homem casado, a imposição social da maternidade, a criminalização da interrupção da gestação, a falta de autonomia da mulher em relação ao próprio corpo e os riscos de um procedimento clandestino. A composição da personagem por parte de Luiza Mariani permite ao filme transitar por uma figura que não abre mão de seus sonhos, passa por conflitos internos diante dos perigos que precisa assumir e sofre com várias práticas violentas aplicadas sobre ela.
Se a sociedade brasileira retirou de Maria de Lourdes Castro Pontes o direito de exercer seu talento artístico, a diretora Flávia Castro lhe restituiu sua relação com a arte. A realizadora já demonstrou preocupações similares em projetos anteriores quando foi ao passado com uma abordagem pessoal ou intimista. Em “Diário de uma busca“, tratou do reencontro com as lembranças do pai, o militante político Celso Castro, vítima da ditadura brasileira. Em “Deslembro“, trabalhou o fenômeno da memória a partir de uma menina (inspirada nela mesma) que perdeu o pai durante a ditadura. Em seu novo trabalho, o teatro não é apenas parte da trajetória de Cyclone, mas também uma presença visual constante. A cineasta cria planos que evocam o cenário ou o palco de um teatro, uma vez que posiciona Luiza Mariani no centro do quadro sob um foco de luz expressiva ao passo que o restante está tomado por grande escuridão.
Outros aspectos estéticos são utilizados para dar vida às variações emocionais de Cyclone. Em algumas sequências específicas, a composição visual e sonora reflete o estado de espírito da protagonista. Quando ela acredita ter superado os empecilhos para a viagem, a cena seguinte é filmada como se já estivesse em Paris devido à trilha sonora com uma canção francesa e uma iluminação lúdica sob ruas encenadas como as da capital parisiense. Quando fica furiosa ao ver o nome apenas de Heitor Gamba no lançamento da peça, a cena é filmada com cortes rápidos, uma sucessão frenética de imagens e um fluxo fragmentado de planos justapostos. No primeiro exemplo, impera o otimismo do futuro, já no segundo caso, predomina a indignação. Então, “Cyclone” reconstitui historicamente uma figura feminina apagada por tantos anos nos eventos e nas emoções que nortearam sua existência e luta.
*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).



