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“DE CARONA PARA O AMOR” [FVCF/2018] – Visibilidade com risada certa

Se o filme segue uma estrutura clichê, isso significa que ele é ruim? DE CARONA PARA O AMOR prova que mesmo um gênero saturado como a comédia romântica pode ser eficaz ainda que siga as convenções dessa espécie fílmica. No longa, o protagonista é Jocelyn, um empresário bem-sucedido e mulherengo que cria novas identidades para seduzir mulheres – a cada nova mulher, uma nova identidade. Em uma delas, ele finge que é pessoa que usa uma cadeira de rodas, o que vai tomando proporções maiores e o impede de admitir a verdade.

O filme é mais comédia que romance, o que se revela um acerto. Tudo começa de um acaso, o que é traço comum das boas comédias. Julie, interpretada pela discreta Caroline Anglade, não cai fácil no flerte de Jocelyn, mas é peça fundamental para a sequência de erros. O problema, no primeiro ato do longa, é que ela (e não apenas ela) é filmada pelo estreante diretor Franck Dubosc com exagero: a ideia é objetificá-la para demonstrar o foco do protagonista em seu corpo, porém os enquadramentos sexualizados são exagerados e vulgares, pois o figurino já teria eloquência suficiente para esse fim.

Enquanto diretor, Dubosc está na sua estreia. Como roteirista, é seu ápice: o texto é repleto de boas piadas, desde um padre sugerindo atividades além das religiosas até situações engenhosamente inusitadas nas quais o protagonista é colocado (como a cena em que ele recebe uma visita inesperada no trabalho). Como não podia ser diferente, o texto fala sobre a dignidade das pessoas com deficiência – em especial, as pessoas em cadeiras de rodas -, aproveitando as piadas para conscientizar o espectador. Ou seja, é o cinema cumprindo uma função social, o que é elogiável por si só. Assim, a ignorância de Jocelyn sobre o tema é pretexto para piadas, mas são piadas justamente relativas à sua alienação – ele não entende, por exemplo, como pessoas em cadeiras de rodas podem praticar esportes. Por que a publicidade precisa colocar um negro como corredor? Por que o público de uma competição paraesportiva precisa ser de pessoas com deficiência? O texto pontua que mesmo quem não é tão distante dessa realidade, como Julie, comete seus deslizes. Mas ressalta que as pessoas com deficiência são, antes de tudo, pessoas. É um olhar humanista sobre uma situação que merece a atenção da sociedade (mas que inegavelmente é marginalizada).

A escolha de Alexandra Lamy como Florence não é um equívoco, pois a atriz consegue ser carismática e alegre na medida certa – requisitos indispensáveis para o papel, fugindo do perfil depressivo que destoaria da trama (ao contrário, a personalidade de Florence é encantadora). Entretanto, melhor seria uma pessoa em cadeira de rodas para interpretar a personagem. Outra bem escolhida é Elsa Zylberstein, que interpreta Marie, a assistente de Jocelyn. A atriz é espontânea e compreende bem a função de coadjuvante, o que não a impede, porém, de tomar os holofotes quando possível, como na cena do restaurante chinês.

Falando em holofotes, no geral, eles ficam com Franck Dubosc, praticamente o dono do filme (já que vive o protagonista, roteiriza o longa e o dirige). Mais acostumado com o ofício da atuação, é nessa área que ele realmente se destaca: Dubosc aproveita o humor textual para ampliá-lo com um excelente (e oportuno) humor corporal, como quando Jocelyn é visto pela primeira vez por Julie ou quando ele encolhe a barriga na companhia do amigo Max (dentre vários outros momentos hilários). Sua expressão de deboche como mentiroso compulsivo convence na mesma medida em que ele muda ao reconhecer o impasse moral – já que a mentira se torna uma bola de neve. Em síntese, ele é muito engraçado.

O longa é bastante inteligente ao adotar, como mencionado, tanto o humor textual quanto o corporal – que, inclusive, não se reduz a Jocelyn (basta atentar para a cena em que ele está na companhia do recepcionista do hotel, cujo olhar sugestivo é bem engraçado). Com alguma originalidade, a película usa até mesmo a arquitetura dos cenários (como o apartamento do protagonista) para fazer piadas (no local mencionado, além disso, há uma cena esplendorosa).

No figurino, é feito o básico: Jocelyn se veste de maneira elegante; Julie exibe consideravelmente o corpo com decotes bem abertos e shorts bastante curtos; Florence adota um vestuário sóbrio e discreto, com decotes muito mais sutis. Já na trilha musical, além de usar as músicas para efeito emocional no espectador, duas canções são introduzidas para causar efeito dramático nas próprias personagens. Isto é, em momentos sensacionais, há o uso de músicas intragiegéticas com função narrativa, o que é deveras raro. A primeira é a linda “Amore mio”, de Brice Davoli (usada uma vez em uma cena cômica e outra em cena romântica); a segunda é “Me and mrs. Jones”: nos dois casos, as músicas estão no contexto das respectivas cenas e as enriquecem (a canção italiana tem maior importância, ressalte-se).

Não se pode negar que “De carona para o amor” é cheio dos clichês das comédias românticas – grosso modo, previsível do começo ao fim (embora talvez reserve uma pequena surpresa), em especial no que se refere ao arco dramático do protagonista. Entretanto, é um filme verdadeiramente tocante que dá visibilidade a um grupo social marginalizado (embora pudesse ter avançado ainda mais). Cinematograficamente, quando é clichê, é muito bom; quando foge do básico, é excelente. Enfim, a risada é certa.

Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.