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“DE VOLTA AO JOGO” – Estreia em alto nível

Se na ação o cinema de gênero pode ter um bom exemplar contemporâneo, esse exemplar é DE VOLTA AO JOGO, primeiro capítulo de uma franquia protagonizada pelo lendário John Wick. Com nomes de peso, o episódio inicial tem seus defeitos, mas é modesto o suficiente para obter êxito em seus objetivos.

O protagonista, outrora um temido assassino cuja competência era reconhecidamente incomparável, está agora aposentado. Após o falecimento da sua esposa, ainda durante o luto, Iosef, filho do mafioso Viggo, pratica atos que revoltam Wick. Nesse momento, ele decide retornar ao mundo do crime para se vingar, ainda que, para isso, precise enfrentar velhos conhecidos.

Cartaz de “De volta ao jogo

Escrito por Derek Kolstad, o roteiro acerta por começar in media res: em poucos minutos, o espectador entende que John enfrentou muitos vilões e que sofre pela morte da esposa. O texto é também certeiro em relação ao backstory do protagonista: Iosef pode não conhecer a fama de John, mas seu pai o conhece muito bem e precisa adiantar ao filho as potenciais consequências de seus atos. E elas são óbvias: uma matança equivalente a um trem desgovernado.

Há que se reconhecer que o longa tem um quê oitentista, quando os heróis dos filmes de ação não precisavam do prefixo “super” para terem capacidades sobrenaturais – em especial, de resistência a golpes e tiros. Não é segredo que diversos atores fizeram seus nomes em papéis nesse estilo, o que não é o caso, todavia, de Keanu Reeves, que já era uma estrela em Hollywood antes de viver John Wick (com altos e baixos na carreira, mais estes que aqueles, mas uma estrela). Como seus antecessores espirituais, Reeves encontrou uma personagem que exige, no máximo, esforço físico, mas não interpretativo. Deu certo.

John Wick é uma personagem carismática, considerando, principalmente, sua imperfeição interna, contraposição clara à sua competência no serviço de assassino. Em outras palavras, ele tem uma margem de vulnerabilidade, que, a rigor, é multidimensional: bate nos criminosos, mas já integrou o mesmo grupo; tem uma causa nobre no seu ponto de vista, porém ela não passa de uma vingança pessoal; mata dezenas, mas apanha muito também. Se, de um lado, parece repetição da ação descerebrada de outros tempos, de outro, é possível interpretar a trajetória de John de maneira ampla: ele é alguém com um passado sombrio que, a duras penas, conseguiu recomeçar a sua vida, contudo circunstâncias externas o impeliram ao retorno.

A narrativa é um pouco perdida (principalmente ao final), mas constrói coadjuvantes interessantes. O maior destaque está no sempre provocativo Michael Nyqvist, que tem a sorte de interpretar um vilão que vive um conflito externo. De um lado, Viggo não quer enfrentar John, porque sabe o enorme risco que corre se o fizer; de outro, é seu filho (Alfie Allen, convincente no simples papel de um jovem criminoso inconsequente) que pode ser morto, o que faz com que não possa simplesmente se omitir. Quando o pai dá uma lição ao filho, não é uma demonstração de sadismo, mas um ensinamento doloroso para, talvez, não estar na mesma situação novamente. Willem Dafoe vive Marcus, assassino de aluguel amigo de John, cuja ambiguidade acrescenta muitas nuances à trama – diversamente de Ms. Perkins (Adrianne Palicki, discreta), muito mais previsível. Outro nome conhecido é o de Ian McShane, aqui, porém, subaproveitado.

A direção do longa é creditada a Chad Stahelski, porém é reconhecida (mesmo sem o crédito) a codireção de David Leitch. A dupla tinha larga experiência como dublês, dirigindo, posteriormente, a continuação de “De volta ao jogo” (no caso do primeiro) e o excelente “Atômica” (no caso do segundo). Tal experiência certamente serviu para que conduzissem ótimas cenas de ação, cujo alto grau de convencimento é cada vez mais raro em tempos de montagem frenética. As coreografias de luta provavelmente são o que a película tem de melhor. Mesmo sendo a estreia de Stahelski e Leitch na direção, fica claro o talento dos dois para o gênero.

A dupla contou com o diretor de fotografia Jonathan Sela, que tinha um currículo vasto em clipes musicais, mas não tanto no cinema. Depois de obras de qualidade reduzida (como “Duro de matar: um bom dia para morrer”), Sela participou do primeiro capítulo de John Wick, inaugurando, na franquia, uma fotografia que não é inovadora, mas é irrepreensível. Por exemplo, enquanto o protagonista está em casa e na fase de luto, prevalece uma paleta de cores acinzentadas, sempre neutras (salvo na cena do carro, em que é usado o amarelo para indicar a intensidade do momento); depois, outras cores surgem, com muito jogo de luzes (por vezes neon) e um visual chamativo. O design de produção de Dan Leigh é também muito bom, destacando-se na cena da casa noturna, com uma arquitetura belíssima.

De volta ao jogo” não faz história, mas é um bom pontapé inicial para uma mitologia própria. A despeito de clichês (como o uso da chuva) e exigência de enorme suspensão da descrença, é um filme honesto em relação às próprias premissas: ação bem executada em um roteiro aceitável. Sem dúvida, uma estreia em alto nível para Wick, Stahelski e Leitch.