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“DEMOCRACIA EM VERTIGEM” – Nós versus eles

“Temo que a nossa democracia tenha sido apenas um sonho efêmero”. Essa é apenas uma das várias elucubrações presentes em DEMOCRACIA EM VERTIGEM, documentário original Netflix centrado no cenário político brasileiro antes, durante e depois do impeachment de Dilma Rousseff.

A despeito de alguns devaneios muito anteriores ao impedimento da ex-presidente, a cineasta Petra Costa, praticamente uma contemporânea da democracia brasileira, expõe os principais eventos recentes que culminaram na polarização política que se vê hoje.

Cartaz de “Democracia em vertigem

Não se trata de um documentário imparcial – e nem deveria ser. A cineasta tem uma visão bastante clara dos fatos e não a esconde. Suas premissas ideológicas são cristalinas, o que não a torna, contudo, acrítica. Por exemplo, em determinado momento, ela diz: “eu votei no Lula com a esperança de que ele reformasse eticamente o sistema político. Mas lá tava ele repetindo práticas que ele sempre condenou e formando alianças com a oligarquia brasileira”. Em outra cena, Gilberto Carvalho declara alguns erros do governo PT. Talvez seu ponto de vista seja mais brando do que gostariam os críticos enérgicos ao governo petista, porém não é esse o foco do documentário.

A intenção de Petra Costa não é avaliar se os anos Lula e Dilma foram bons ou ruins ao país. Diversamente de “O processo”, de Maria Ramos (cuja crítica pode ser lida clicando aqui), o impeachment também não é o tema do documentário de Costa. Sua proposta é bem mais ampla e de difícil análise. Para ela, o impedimento da ex-presidente foi um dos maiores passos – mas não o único – do Brasil rumo a uma nova ditadura. Como exemplo está o próprio povo, no qual há vozes clamando por um novo golpe militar.

Nessa visão global, “Democracia em vertigem” elenca – em uma cronologia um pouco confusa – os eventos precedentes ao impedimento de Dilma e que nele culminaram. Menciona expressamente, dentre outros, o Mensalão e a Lava Jato, além de figuras com inquestionável influência política, como Aécio Neves, Jean Wyllys e Sérgio Moro. Sem efetuar grandes considerações axiológicas sobre a Lava Jato (no máximo, criticando o espetáculo midiático gerado em torno da Operação), a intenção é mostrar como ela colaborou para o estado da arte. Não é o mérito da Lava Jato que ela examina, mas como ela colaborou para o afastamento da democracia (exemplificando na impossibilidade de Lula concorrer em 2018).

Na prática, o resultado que a cineasta visualiza é uma imensurável polarização política. Na medida em que o filme progride na sua narrativa, mais adentra nesse tema, que está presente, todavia, logo no prólogo (de um lado, Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de outro, populares comemorando sua prisão). É perceptível a franqueza da sua preocupação e de seu pessimismo, enaltecidos por imagens fortes (confrontos de populares com a polícia, cidadãos expulsando pessoas de certos locais apenas pela cor da sua camisa) e por uma trilha musical extremamente melancólica (com árias belíssimas de Bach).

Se não é imparcial, “Democracia em vertigem” é inquestionavelmente honesto. A diretora imprime enorme pessoalidade ao filme, de modo que, ao mesmo tempo em que mostra o que fez o Brasil chegar aonde chegou, também mostra o que a tornou quem é. Se o documentário mostra um áudio suspeito de Temer, também o faz em relação a Lula, havendo espaço para o espectador avaliar seus significados. Democrática, a obra se esmera em mostrar os dois lados da moeda: de Dilma a Bolsonaro, ambos em cômodos particulares e expondo um pouco de sua privacidade. Há imagens dos dois lados das incontáveis manifestações populares que ocorreram de 2015 a 2018, aclarando a proximidade cronológica com o antagonismo político que ultrapassou os anos. São ouvidos desde os protagonistas desses eventos até personagens que normalmente seriam figurantes.

Com insights de grande sagacidade (a associação de Temer a Brutus é inteligentíssima) e uma carga emocional mais pesada que na maioria dos documentários, “Democracia em vertigem” pode não traduzir a visão de uma nação, mas vale muito como reflexão para o futuro. Mesmo quem parte de premissas ideológicas distintas das de Petra Costa provavelmente enxerga a polarização política. Seria esse antagonismo tão incompatível com a queda da democracia? O discurso “nós versus eles” não parece mais próximo da ditadura? Se o espectador, mesmo discordando do ponto de vista adotado, é levado a esses questionamentos através do documentário, ele atinge o seu objetivo.