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“DREAMS” – Comunicações do amor

Sex“, “Love” e DREAMS formam um trilogia que se passa em Oslo, na Noruega, e aborda amores, relacionamentos, sexualidades, liberdades e identidades. Em todos eles, o diretor Dag Johan Haugerud investe na sucessão de longos diálogos para desenvolver os personagens e os conflitos dramáticos. Nos dois primeiros filmes, o equilíbrio entre o texto falado e a construção formal é irregular. No último, a narração em voice over é a saída expressiva para dar conta das instabilidades do amadurecimento, das contradições do primeiro amor e das ambiguidades do discurso narrado.

(© Imovision / Divulgação)

Johanne tem dezessete anos e experimenta seu despertar sexual ao se apaixonar inesperadamente por uma professora. O convívio e a aproximação entre elas fazem a jovem desejar um relacionamento, mas não é isso que acontece. Ela, então, transfere a carga emocional da paixão para um caderno em que registra o tempo partilhado com Johanna e seus sentimentos mais íntimos. Quando a mãe Kristin e a avó Karin leem o diário, reagem de formas diferentes diante das experiências de Johanne e do valor literário daquelas páginas. A partir daí, três gerações de mulheres refletem sobre suas próprias questões pessoais e vivências amorosas.

A narração em voice over é central para a narrativa. De início, a decisão de armazenar o relato do amor platônico na nuvem é encenada entre a literalidade e a metáfora. O texto se refere ao ato de salvar um documento escrito em uma rede de servidores digital, já as imagens apresentam um céu límpido preenchido por nuvens. A sequência de abertura é expressiva, pois combina a familiaridade da juventude com os artigos tecnológicos e o receio de ver tudo ser exposto como uma chuva derramada sobre todos. Conforme o tempo passa, o recurso perde grande parte de seu efeito ao ser empregado apenas como uma prática redundante que esvazia a linguagem audiovisual. A protagonista conta o que houve entre ela e a professora, mas nada é exibido em imagens, o que reforça a dependência pelo texto e desperdiça as potencialidades visuais do cinema. Em paralelo, os prazeres e angústias da adolescente são sufocados por uma narração ininterrupta que precisa explicar cada sentimento e não dá espaço para as imagens e a atuação de Ella Øverbye cumprirem esse papel.

Embora a apresentação do diário de Johanne tenha as fragilidades pontuais de fazer o texto prevalecer sobre a construção visual, Dag Joahn Haugerud trabalha com desenvoltura várias temáticas relativas aos relacionamentos. A protagonista se sente deslocada na escola e busca refúgio na leitura para conseguir se entender. A partir do momento em que passa a ter aulas com Johanna, apaixona-se pela mulher mais velha e passa a lidar com sentimentos conflitantes. O entusiasmo de sentir o primeiro amor entra em choque com a apreensão de estar fazendo algo errado. Os dramas experimentados na adolescência parecem equivaler ao fim do mundo, por isso ela projeta qualquer mínimo sinal dado pela professora como uma demonstração correspondida de carinho e a aproximação de outras pessoas um risco para a relação imaginada. Então, não consegue conter a infelicidade que se abate sobre ela em alguns instantes nem a empolgação exagerada de outras ocasiões. Chama atenção, inclusive, como Ella Øverbye consegue traduzir essa variação emocional como uma obsessão quase infantil sem cair na caricatura.

Os diálogos e a narração da protagonista podem ocupar grande parte da narrativa, mas o cineasta vai além dessa vez. Diferentemente dos anteriores, o terceiro filme explora com mais cuidado os silêncios e a composição visual dos planos. Tais momentos podem ser lembrados pelos espectadores, justamente por conseguirem traduzir o estado de espírito da jovem e seus conflitos emocionais sem recorrer a uma exposição didática ou anticlimática. É assim quando a visita de Johanne ao apartamento de Johanna é filmada sem diálogos porque se organiza a partir das ações das personagens e da trilha sonora. Mais adiante, certo trecho do diário da protagonista é narrado com base em uma subjetividade que idealiza um encontro com a professora, então a construção da cena sugere, através da fotografia, uma recriação livre daquela memória. Determinada passagem de tempo na trama é mostrada outra vez com a combinação entre trilha sonora, ausência de conversas e ações da jovem. Mesmo quando volta a narração em voice over no encontro entre Johanna e Kristin no terceiro ato, sua utilização é criativa ao se transformar em uma discussão à distância entre aluna e professora.

Se observada atentamente, a terceira parte da trilogia ganha maior densidade ao se inserir uma camada metalinguística. A importância do registro e da comunicação das experiências é constantemente citada, apesar de a protagonista eventualmente se questionar se não deveria apenas guardar o que viveu em sua memória e não em um meio externo a ela (ainda assim, a memória humana é um tipo de armazenamento que pode dar significados ao que foi experimentado). Ela, primeiramente, escreve um diário convencional. Porém, sente a necessidade de ter aquele relato próximo de si a todo momento, o que a faz salvar o arquivo em um pen drive. Em seguida, imprime o texto e uma nova versão é produzida. Por fim, publica como um livro. Por que não supor que essa sequência inclui também, extradiegeticamente, o registro audiovisual feito por Dag Johan Haugerud? Cada movimento feito precisa igualmente de um público receptor, logo sua história busca confidentes ou ouvintes. A mãe, a avó, a editora e Johanna têm acesso através da impressão, enquanto os espectadores do filme ocupem o papel de interlocutores ao ver as cenas e ouvir a narração em voice over.

Os desdobramentos da trama não afetam apenas a jovem que viveu, refletiu e compartilhou suas experiências e emoções. Além de fazer com que a narrativa apresente um estilo diferente dos filmes anteriores, os personagens coadjuvantes também são atravessados pelo arco de Johanne e não são resumidos a meros acessórios para a trama ou pano de fundo para o conflito central. Kristin e Karin têm suas próprias histórias e oportunidades de evidenciar os dilemas que enfrentam, embora sejam breves. A mãe e a avó reagem de maneiras diferentes à leitura do texto da protagonista. A primeira se preocupa com a possibilidade de abuso, enquanto a segunda se comove com as habilidades da escrita. As reações imediatas se alteram, fazendo com que a mãe apoie a publicação do livro e se aproxime emocionalmente da adolescente, enquanto a avó seja contrária à publicação por conta da inveja de não conseguir escrever algo tão sincero há um bom tempo. Além disso, as duas mulheres têm suas próprias dores emocionais no que se referem aos relacionamentos. Kristin busca um novo parceiro, mas não encontra nada duradouro e Karin sofre com a saudade de uma relação e se contenta com pequenos gestos carinhosos.

Em “Sex” e “Love” já se percebia a sensibilidade para tratar dos dramas relacionados às identidades, aos amores e à busca por liberdade. Faltava o mesmo sentimento para lidar com os elementos formais desses filmes, que se concentravam excessivamente nos diálogos e na exposição literal da condição interior dos personagens. Em “Dreams“, o esmero para a construção visual e narrativa o faz ser o mais bem-sucedido da trilogia. Consegue tanto potencializar a história de amadurecimento de uma jovem afetada por sua primeira decepção amorosa quanto refletir sobre as possibilidades da narração e da comunicação de emoções contraditórias. Ao fazer isso, Dag Johan Haugerud constrói um universo diegético que pode concluir o arco de sua protagonista com a beleza de encontros e desencontros, a fragmentação das relações nos dias atuais, a sucessão ininterrupta de experiências distintas e o enfrentamento de dores aparentemente intermináveis. Um encerramento que não coloca nenhum ponto final naquelas vidas nem precisa de uma sequência contínua de diálogos para externalizar o que foi e ainda será sentido.