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“DÚVIDA” – Certeza

Existe dúvida quando há certeza? Podem certeza e dúvida coabitar? Em que medida pode a certeza vencer a dúvida? O filme DÚVIDA não responde a própria pergunta que formula em seu plot principal, mas deixa uma certeza bastante sólida: a certeza de que se trata de uma obra-prima.

Em 1964, a Escola Sr. Nicholas é rigidamente comandada pela sua diretora, a experiente irmã Aloysius. Apesar de ser um colégio católico, o padre Flynn quer flexibilizar as práticas da comunidade, contando com o apoio de várias pessoas, inclusive da jovem irmã James. Seu primeiro aluno negro, Donald Miller, acaba recebendo bastante atenção do padre, o que gera a suspeita da irmã Aloysius de uma relação inadequada, talvez abusiva, entre os dois. Bastam alguns indícios para que a diretora inicie uma empreitada para expulsar o padre da escola.

(© Disney/Buena Vista / Divulgação)

O texto, originalmente teatral, escrito por John Patrick Shanley é bastante afiado e provocativo. Ainda que a catapulta para a trama seja a dúvida sobre atos espúrios possivelmente praticados pelo padre Flynn, existem elementos pretéritos a essa trama, além de camadas ainda mais complexa. Há um verdadeiro choque de visões, pois a maneira pela qual o padre é visto pela irmã Aloysius é negativa desde antes das suspeitas – e a recíproca é verdadeira. Enquanto ela questiona a motivação dele para escolher a dúvida como tema para um sermão (qual seria a dúvida dele?), ele a chama de dragão para fazer a irmã James rir. Em um ambiente de forte religiosidade e de uma autoridade central fortemente exercida pela irmã Aloysius, não haveria espaço para um padre questionador e carismático.

Utilizando a terminologia weberiana, o conflito não é apenas entre pessoas, nem mesmo entre ideias, mas entre dominações. A irmã Aloysius exerce uma dominação tradicional (pois já é o ethos daquela comunidade a obediência a ela), não admitindo a dominação carismática do padre Flynn (o trato afetuoso faz com que os alunos o respeitem). Com inteligência, o texto permite ampliar a análise para dois âmbitos: na escola, o instrumento de dominação usado pela diretora é o medo – afinal, ela é a diretora -, porém na Igreja ela assumidamente ignora a normatividade (já que o padre é seu superior) em prol de um bem maior. Ela se torna, assim, uma personagem que sabe que está agindo de maneira paradoxal: se os valores tradicionais devem ser preservados, ela não poderia ousar enfrentar um padre.

A questão valorativa também assume contornos complexos. A irmã Aloysius está disposta a pagar caro para desmascarar o padre Flynn, encontrando nos indícios trazidos pela irmã James uma certeza praticamente inabalável. É verdade que a suscetibilidade desta a influências externas é imensa (não por outra razão, ela deslocou-se de onde estava apenas para mexer no armário do padre), contudo a intransigência daquela é notória.

Brilhantemente, Meryl Streep incorpora a freira experiente como uma casca exteriormente inquebrável (seja pelo semblante sempre sério, seja pela entonação vocal voltada ao imperativo), deixando uma margem extremamente sutil para a vulnerabilidade (vista apenas, por exemplo, na vermelhidão dos olhos, sugerindo um abalo emocional que está sendo contido) – ou seja, a casca pode ser quebrada, mas por dentro (como visto na avassaladora cena final). Quando Viola Davis entra em cena, a interação entre ela e Streep é simplesmente um fenômeno – no clímax, Davis é assustadoramente impressionante.

É fundamental a interpretação leve de Philip Seymour Hoffman para que o padre Flynn sustente a dubiedade em relação aos atos, de um lado, e a visão aberta de mundo, de outro. É uma leveza diferente daquela de Amy Adams (como a irmã James), porque o que ele precisa exteriorizar não é a ingenuidade, mas a afetuosidade. O clérigo quer ser visto pelos alunos como um familiar; a freira, como uma professora serena. Em um duelo de titãs, os alunos exercem função instrumental, como é o caso de Donald Miller (Joseph Foster II) e William London (Mike Roukis). Contudo, eles são também símbolos de uma infância sufocada: o primeiro, massacrado por todos os lados, enxerga no padre um ídolo e, na Igreja, uma solução; o segundo, entrando em uma nova fase da vida, se insurge contra a obsolescência dos valores pregados na escola, abraçando o alívio da marginalidade. Cedo eles descobrem que o querer pode ser perigoso; no caso de Donald, o ser pode ser doloroso.

Em meio às cores foscas da fotografia impecável de Roger Deakins, a austeridade da irmã Aloysius é devoradora. Da mesma forma, o uso de plano holandês enaltece o quão fraco vai ficando o padre à medida que é atacado pela diretora. É um duelo de titãs no qual o vencedor é o espectador, que pode ter a certeza de que está assistindo a um filme espetacular.