“ERA UMA VEZ EM GAZA” – Estranhamento [49 MICSP]
O tom tragicômico de ERA UMA VEZ EM GAZA causa estranheza e até mesmo desconforto. A história se passa em 2007, ou seja, 18 anos antes de seu lançamento, tendo havido, nesse interregno, um agravamento enorme do conflito entre a Palestina e Israel. É justamente a seriedade do conflito que motiva o estranhamento, deixando a dúvida se a obra quer constituir uma crítica sarcástica ou se entende que a comédia é o melhor meio de enfrentar a situação.
Yahya é um jovem estudante que trabalha no restaurante de Osama vendendo faláfel. Juntos, eles elaboram um esquema para vender drogas no meio dos sanduíches. Seu negócio corre risco quando Osama encontra em seu caminho Abou Sami, um policial corrupto e muito ambicioso.

Escrito por Marie Legrand, Amer Nasser, Arab Nasser e Tarzan Nasser (os dois últimos são os diretores do longa), o roteiro de “Era uma vez em Gaza” é de um texto metalinguístico dividido em dois atos. O fio condutor da trama, porém, é a amizade entre Yahya (Nader Abd Alhay) e Osama (Majd Eid), que assume caráter paternalista quando este, em determinado momento, compreende que o mundo do tráfico não é um local adequado para aquele. Não obstante, o tom adotado é essencialmente cômico, como em toda a obra, com piadas quase infantis – por exemplo, na resposta “com os olhos” à pergunta “como você me vê?”.
A trilha musical de suspense conflita um pouco com esse tom cômico, o que não é um problema porque o envolvimento de Abou Sami (Ramzi Maqdisi) com a dupla principal realmente gera suspense. A trilha, inclusive, exerce forte presença na condução da narrativa e dá ensejo a uma cena esteticamente bela, a que Osama dança uma música em estilo pop com luzes coloridas piscando ao fundo. A única personagem que representa seriedade todo o tempo é Abou Sami, havendo ainda coadjuvantes – como o Diretor (Is’haq Elias) e o Produtor (Said Saada) – que se destinam, principalmente, ao humor, que é majoritariamente exitoso.
Esses dois coadjuvantes servem também para o subplot metalinguístico, concernente a “O rebelde”, que seria o “primeiro filme de ação feito em Gaza”. A metalinguagem combina com o estilo teatral de uma farsa, perceptível pelo aspecto caricatural das personagens e a simplicidade do enredo, além do exagero das cenas. Por exemplo, quando uma personagem leva um tiro no peito, ao invés de cair, ela abaixa a cabeça para olhar para o buraco, levanta novamente a cabeça e somente após isso acaba caindo. Existe também um diálogo com os filmes de ação, não apenas em razão do “filme dentro do filme”, mas também em cenas fora das filmagens intradiegéticas, como a referência a “Busca implacável” na cena da cadeira.
De maneira lateral, o filme aproveita as mídias para expor a escalada do conflito entre palestinos e israelenses. Isso aparece em jornais e na televisão, bem como no subtexto do filme que está sendo gravado no segundo ato, mas não é central. Note-se que o vilão da história é palestino, de modo que Israel representa apenas um manto de maldade que vai subindo sobre as personagens. De maneira simbólica, a personagem interpretada por Yahya (no filme em que ele é ator) é um símbolo da resistência, mas até mesmo isso é esquisito quando se considera que o islamismo não usa imagens de pessoas, para evitar a idolatria. Ainda assim, a tentativa de fazer dele a representação da luta e do brio palestinos é evidente.
Embora “Era uma vez em Gaza” seja um filme engraçado, ele está imerso, tanto do ponto de vista intradiegético quanto fora da diegese, em uma tragédia digna de lamentos, sendo no mínimo surpreendentes o mero uso de figuras simbólicas e menções periféricas a um mal que acomete o povo palestino de maneira abjeta. Se o que a obra deseja é criticar Israel, as duas vias adotadas são inócuas: ao sarcasmo falta a contundência; ao humor simples, a compensação com o drama real.
* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.

