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“EXPLODE SÃO PAULO, GIL” – É o que é [14º ODC]

Não sei muito bem o que escrever sobre EXPLODE SÃO PAULO, GIL, o novo filme de Maria Clara Escobar que estreou nessa semana durante o 14º Olhar de Cinema. Não é o melhor dos começos, mas é o que é. Não sei o que dizer em grande parte porque o filme de Escobar não só é do tipo que nos rouba palavras com deslumbre, intransigência e firmeza, mas é do tipo que torna o verbo essa coisa boba que de fato é quando põe-se a tentar conter os fenômenos.

(® Olhar de Cinema / Distribuição)

Ao explodir São Paulo e infinitas outras coisas, Gil e Maria Clara conjuram um filme singular, num sentido difícil de definir. Não se trata exatamente da peculiaridade formal, embora haja; nem também de peculiaridade textual, embora haja, igualmente. Me vinham a mente durante a sessão outras singularidades recentes – o “Bloody Nose, Empty Pockets” dos irmãos Ross, ou “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos. Lembro desses filmes como lembro de certas pessoas, nem pelo que têm em comum com outras, nem pelo que têm de diferente; me lembro pelo que são, e só. Presença, sensação, assombro. Assim me lembro também de certas tempestades, de certos sonhos, certos anos passados, certas canções, cheiros, gostos, certas peças de roupa, brinquedos, casas, certas cidades, viagens, abraços. Assim me lembrarei de “Explode São Paulo, Gil”. Pelo que é, e só.

Descrevo uma cena, assim talvez a coisa fique mais clara (assim espero [mas também espero que não]). Pergunta nossa protagonista, em certo momento, para a mulher atrás da câmera: “Você tem certeza que está aqui?”. “Tenho”, responde Maria Clara. “Eu também”. É esse transcartesiano (nem anti-, nem pós-) espírito de inabalável convicção que dá ao filme de Escobar e companhia sua força destemida, tornando absolutamente irrelevantes quaisquer tentativas de classificação ou de categorização da coisa que vemos em tela. Ficção ou documento, encenação ou observação, drama ou humor, sonho ou realidade, desejo ou desgosto, verdade ou mentira, sentido ou asneira, tristeza ou alegria, feio ou bonito – não é que as “barreiras se borram”, como gostamos de dizer. É mais. É que está já tudo amalgamado nessa viva criatura fílmica que parece ter sempre existido, e ter sido espontaneamente gerada em algum lugar no tempo, em algum tempo no espaço, fora deles.

Tomo nota de que não falei um “a” sobre o que este filme trata, e que o que foi dito talvez evoque imagens de uma obra anti-narrativa e despersonificada. Mea culpa, não é bem assim. Gil, a figura no centro do longa e que o batiza, se apresenta com seus adjetivos: periférica, faxineira, epilética, depressiva e sapatão. É também cantora, ou quer, ou já é mesmo sem ser. Na vida real, seja lá o que isso queira dizer, Gil era faxineira de Maria Clara, assim como no mundo do filme, seja lá o que isso queira dizer também. Gil interpreta Gil, é Gil, e Maria Clara é Maria Clara, a interpreta. Discutem sobre o filme que estão vivendo em cenas que encenam debates sobre encenações que nunca chegam a ser postas em cena.

Poderia gastar um ou dois parágrafos aqui, aliás, falando sobre essa relação, a tensão patroa-funcionária, o choque de classes, a hipocrisia aparente de um suposto “burguesismo” falando sobre um abstrato “povo”, entre outras problemáticas cansadas, mas frequentemente incontornáveis no cinema brasileiro contemporâneo. A verdade é que, se meus olhos e ouvidos não me enganaram na tarde da sessão, alguns dias atrás, tudo isso não passa de ponto de partida para “Explode…“, questões que pairam longe, numa quarta, quinta órbita, um gatilho de arma sem bala, um intento muito felizmente frustrado, porque Gil logo sequestra seu filme como um raio, toma os planos de assalto, encarna a si mesma e se alastra pela tela. Se o objetivo de Escobar era tecer complexos comentários sobre essas cabeludas coisas historico-socio-culturais todas, então falhou, e que bom que falhou, então; se não quis, de fato não o fez, e que bom que teve sucesso. Não lugar de um desinteressante filme-argumento, de um pobre filme-razão, fez um filme-acontecimento, filme-experiência, filme-presente.

Ao mesmo tempo que lamenta sobre o sistema, as amarras do dinheiro, a arbitrariedade da existência, Gil também vira a cantora que sempre quis ser e foi e é. Grava seu disco, sobre no palco, ganha seus fãs, se aposenta, faz entrevista para seu documentário de fim de carreira. Enquanto isso escreve em seu caderno. E aí de repente convulsiona, caída na varanda, e no meio das descontroladas descargas de neurônios, a fusão de imagens faz com que Gil sonhe um sonho estranho, talvez um pesadelo, uma memória, um devaneio, um roteiro, uma letra de música, qualquer coisa dessas, tanto faz: ela sonha que é faxineira, que passa o rodo numa casa, que lava as louças. Vê se pode! E Gildeane Leonina ainda sonha que é Gilda Nomacce, e é mesmo, ou quer ser, ou foi. Uma loucura dessas, o cinema! E das mais bonitas.

E bonito é, admiravelmente, esse cena da síncope. No lugar da fácil e oportunista armadilha antiética, da qual passa longe, o plano mira e acerta na ressignificação, na reapropriação, reivindicação dessa condição tão cruel. A convulsão de Gil é tornada, com muitíssima candura, parte dela; nem coisa ruim, nem coisa boa. Parte do todo. Outro agente daquela mente maluca, no melhor dos sentidos, parte daquela mulher, daquela individualidade. E se por um lado é isso, a cena é ainda espaço de profunda ternura. Dedê, sua companheira, já sabe o que fazer, conhece os procedimentos – i.e., conhece a mulher que ama. Ela prontamente ampara Gil, a vira de lado, a abraça, acalma seus tremores, até que a crise passa. (Aí me lembro de imagens anteriores, duas ou três: é quando se beijam e quando dançam coladas uma na outra que as duas revelam para a câmera as lapelas que levam no bolso. Sempre levaram, como levamos todos, vivendo-encenando nossos enlaces e desmaios, uns pros outros).

E pelas ruas segue Gil, tacando bombas nos edifícios, fazendo shows na cena paulista, andando de bike, caindo no chão, bebendo cerveja, fazendo filme. Dizer que Gil é o motor de “Explode…” não faz justiça à coisa. Ela é a causa, é o motivo do filme, o mote. É o filme. Lembro que lembro do filme como lembro de gente…então acho que eu lembro de Gil, que nunca conheci, mas acho que sei quem ela quer ser, então sei quem é, acho. Conheço a Gil quando ela abraça sua caixa de som e assiste no celular a audition de Susan Boyle no Britain’s Got Talent¸ e tira só verdade daquele cinismo todo. Um plano belíssimo, que espelha uma das mais belas cenas do cinema brasileiro, aquela em que Sr. Henrique canta “My Way” em algum apartamento do “Edifício Master”. Conheço o Sr. Henrique também, penso. Conheço Gil quando rege os bêbados cantando alto no karaokê do bar, de costas pra câmera. Conheço Gil quando usa todos os adjetivos ruins pra falar do homem. Conheço Gil quando ama os outros independente disso.

Não sei muito bem o que mais escrever. Que tudo isso que está aí se exploda, e que tudo comece de novo como se sempre tivesse existido. Porque existiu, e existe. Obrigado, Gil!

* Filme assistido durante a cobertura da 14ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (14th Curitiba Int’l Film Festival).