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“FOGO CONTRA FOGO” – Vincent contra Neil, Pacino com De Niro

Nas tramas de filmes policiais, o embate entre um criminoso e um investigador é um código narrativo recorrente. O vilão realiza uma série de crimes enquanto seu antagonista lidera uma caçada para capturá-lo. Nesse sentido, FOGO CONTRA FOGO poderia ser visto simplesmente como mais um exemplo de uma estrutura clássica se não fosse por um conjunto de particularidades que o fazem ser uma obra marcante do cinema estadunidense da década de 1990. O estilo visualmente elegante da direção de Michael Mann ressalta o duelo poderoso entre os protagonistas, que faz os espectadores ficarem hipnotizados com as interações entre Al Pacino e Robert De Niro.

(© Warner Bros / Divulgação)

Em Los Angeles, a quadrilha liderada por Neil McCauley comete vários assaltos. Quando roubam US$ 1,6 milhão de títulos ao portador, os assaltantes ficam na mira do Departamento de Polícia e, em especial, do detetive da Homicídio Vincent Hanna. Apesar de contar com poucas pistas, a investigação prossegue sob os cuidados de um policial incansável na perseguição aos criminosos. Em paralelo, a vida familiar de cada um deles aparece e fica exposta a um jogo de gato e rato de desfecho inevitavelmente violento.

Diferentemente das projeções iniciais, o roteiro não estabelece uma narrativa constantemente frenética e dotada apenas de sequências de ação. Nos intervalos entre os momentos de assalto, perseguição ou tiroteio, os personagens demonstram quem são para o público. Então, o ritmo diminui e os arcos dramáticos se destacam, principalmente com Neil e Vincent. Robert De Niro e Al Pacino constroem duas figuras que, a princípio, estão em oposição. O primeiro rejeita o estereótipo de um ladrão de feições agressivas que precisa se impor a todo momento pela força física, já que parece silencioso, discreto e de expressão contida. Porém, sabe lidar com ameaças e questionamentos a sua autoridade por meio da violência, como se nota no confronto com Waingro. Já o segundo não faz do detetive um símbolo de perfeição moral nem de sobriedade comportamental, pois não hesita em fazer acordos questionáveis com informantes e ameaçá-los de modo agressivo. Além disso, o ator utiliza pontualmente expressões mais carregadas de ironia, provocação ou hostilidade.

Ao longo do filme, o embate entre Neil e Vincent se distancia cada vez mais de perspectivas moralizadas. O líder da quadrilha não se encaixa em uma imagem simplificada de vilão, afinal se comporta como um pai para os outros ladrões e se preocupa com seus relacionamentos amorosos e famílias. É assim que ele tenta ajudar Chris a não se separar de Charlene e Michael a cuidar financeiramente dos filhos. O próprio Neil se esforça para deixar sua condição solitária, representada pelo apartamento vazio de móveis e pela iluminação fria, para constituir um romance com Eady. Ao invés de carregar uma visão maniqueísta, Neil abandona a postura hostil no primeiro encontro com a mulher e se conecta emocionalmente com ela. Em oposição, o lado romântico não está presente em quem se poderia imaginar que seria o “herói”. Vincent está no terceiro casamento e entra em atritos constantes com Justine porque se dedica muito mais ao trabalho e decepciona a esposa com as sucessivas ausências e o temperamento instável. Apesar da crise conjugal, ele ainda mantém uma boa relação com a filha de Justine.

Com o passar do tempo, crescem as expectativas para assistir a um confronto direto entre Neil e Vincent. De início, Michael Mann concebe visualmente esse antagonismo com escolhas formais de montagem e construção de planos. Uma tentativa de assalto é frustrada pela vigilância secreta da polícia, o que é mostrada por uma sucessão de closes do ladrão e do detetive como se estivessem se olhando apesar de estarem em locais diferentes. Em outra passagem, a quadrilha engana os policiais em um píer e o olhar de Neil pelo binóculo do alto de um prédio se encontra com a busca de Vincent pelo paradeiro do criminoso. Essas construções despertam o interesse dos espectadores pela chegada do momento em que Robert De Niro e Al Pacino contracenem, dois atores essenciais para Hollywood e capazes de dar grande estofo dramático aos personagens. Na sequência em questão, os antagonistas se encontram e conversam em um restaurante, fazendo com que a dinâmica entre eles se complexifique. Graças à performance dos dois atores, eles criam figuras que se opõem, aproximam-se na dificuldade de ter companhias para suas vidas e recusam o moralismo no embate porque reconhecem que não podem abandonar o que fazem.

O confronto entre os protagonistas não se dá no vazio nem em um ambiente etéreo. Como Michael Mann já fez em “Miami Vice“, os cenários tem uma função dramática muito importante. Mesmo que não trabalhe o digital como viria a fazer posteriormente, o diretor filma Los Angeles em “Fogo contra fogo” de maneira expressiva. Primeiramente, porque a cidade está integrada aos conflitos dos personagens. É assim, por exemplo, quando Neil e Eady têm o primeiro encontro e parecem estar unidos à imagem sob as luzes brilhantes ao fundo para evocar, estilizadamente, o nascimento do romance entre eles. Mais adiante, Neil está de volta ao seu apartamento e uma vida solitária transparece na composição de um quadro em que ele está à frente de um trecho do mar visto pela janela com uma fotografia noturna e fria. Além disso, a construção visual preza pelo primor estético de amalgamar os personagens ao cenários, dando a ideia de que estão emoldurados por uma cidade que se relaciona com as emoções em jogo.

A atenção dada à composição dos cenários também impacta no desenvolvimento de uma história de crime urbano. As sequências de ação são filmadas de modo a se aproveitar dos ambientes da cidade, sabendo explorar a movimentação agitada de cidadãos durante o dia, a ocupação de diferentes espaços de um grande centro dos EUA e a aparente calmaria da noite. Em todos esses momentos, o cineasta se dedica com esmero à construção do espaço cênico, da relação entre os personagens e da ação propriamente. O melhor exemplo é a longa cena de confronto nas ruas entre a quadrilha e a equipe de policiais, pois a sensação de adrenalina da perseguição é palpável através dos efeitos sonoros dos tiros e da movimentação dos personagens pelo ambiente. Ainda assim, Michael Mann não valoriza apenas os grandes momentos de tensão e as set pieces mais notáveis, já que se preocupa com detalhes sutis das consequências da ação, como faz no close de Al Pacino no instante em que salva uma refém.

Fogo contra fogo” sabe dosar com eficiência a aceleração das cenas e a moderação do ritmo da narrativa para desenvolver os arcos dos personagens. Independentemente da intensidade em questão, o embate entre Neil e Vincent é o fio condutor de todo o filme. A trama cria uma expectativa crescente no público para vê-los juntos em cena, para revê-los mais uma vez pelo tempo que for possível quando se afastam e para apreciar os trabalhos de Al Pacino e Robert De Niro. Ao invés de também estarem em oposição, o desempenho de cada um deles dá subsídios para que o outro continue em um nível admirável. Nos minutos finais, Michael Mann estabelece muitos conflitos que correm em paralelo até uma última oportunidade de ver o policial e o ladrão se enfrentando. E a última sequência é o fechamento simbólico ideal para tudo que já havia sido apresentado: uma perseguição concebida para aproveitar um os detalhes espaciais de um aeroporto à noite, uma fotografia noturna pensada para ampliar a tensão a cada movimento da luz e dos aviões e as ações realizadas por Neil e Vincent para demonstrar como respeitam e admiram o outro apesar de estarem em lados opostos.