Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“FOI APENAS UM ACIDENTE” – Pensar e sentir nunca foi tão fácil [49 MICSP]

É um clichê encarar a vida como resultado de tudo que se foi vivido. O que não é clichê é pensar em situações específicas que constituem um alinhamento de astros – leia-se, produto da álea – e que acabam desembocando no inesperado. Com brilhantismo, FOI APENAS UM ACIDENTE aproveita a coincidência para traduzir emoções e pensamentos, catapultados pelo mistério, deslocando-se da comédia ao drama como uma parábola geométrica.

Dirigindo na estrada com sua família, Rashid sofre um acidente em virtude do qual seu carro precisa parar. Ao conseguir ajuda, ele é observado por Vahid. Esse é apenas o começo de uma longa empreitada.

(© Mubi / Divulgação)

Em sua filmografia, Jafar Panahi trabalha com obras que driblam a fronteira entre documentário e ficção, muitas vezes colocando a si mesmo como personagem. Dessa vez, o viés ficcional é mais claro, em especial pelo modo como a trama evolui – que é pouco crível para ser um documentário puro -, mas tem evidentemente uma grande base verídica. Em termos de linguagem, chama a atenção a ausência de sons extradiegéticos, corroborando o estilo documental. Assim, são privilegiados os sons intradiegéticos, que compõem um acervo simbólico na narrativa, como o ruído do vento no deserto (representando o vazio em que as personagens se encontram), o canto das aves no local das fotografias (parecendo urubus confabulando antes de atacar a presa, metáfora sagaz para a cena) e o ruído da prótese (que tem uma função narrativa simplesmente inefável).

Como nos outros filmes do cineasta, “Foi apenas um acidente” tem um subtexto crítico ao regime iraniano. São mencionados fatos que são de conhecimento público, como prisões por “propaganda contra o regime”, prática de tortura e pessoas fanáticas pelo governo. Com inteligência, todavia, a crítica não é unidimensional, pois Panahi não encara as pessoas que estão por trás desses fatos como encarnações da maldade. O problema é mais profundo, relativo ao sistema como um todo, sendo as pessoas meros peões em um xadrez no qual as pessoas comuns estão fadadas a perder todas as partidas. Isso não elide a torpeza dos atos perpetrados em nome do regime, mas esclarece que a luta precisa ser institucional, não pessoal. Da mesma forma, Panahi reflete sobre os métodos de combate, questionando se devem ser empregados os mesmos que vitimaram aqueles que foram perseguidos. É dizer: o que se deseja é mudança ou vingança? Logo, surge um dilema moral sobre o caminho do enfrentamento. Enquanto Shiva (Mariam Afshari) representa a parcimônia e a racionalidade, Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr) tem postura inflamada e explosiva, o que justifica o questionamento constante sobre as intenções de Vahid (Vahid Mobasseri), que, por sua vez, é a semente da dúvida no seio do grupo. De algum modo, contudo, todos os envolvidos têm uma resposta visceral aos fatos pretéritos.

Com espaço para sutilezas como o véu de Shiva (que é colocado apenas para ir à farmácia e falar com os policiais, o que enriquece a personagem como uma mulher livre e autônoma), o que há de mais fascinante no longa é o modo como Panahi percorre emoções distintas e modifica a atmosfera sem rupturas disfuncionais. Tudo começa com um grande mistério, reforçado pela estética noturna (as personagens na penumbra, o vazio da noite…) e pela ausência de explicações. Por que Vahid quer a luz apagada? Por que ele age daquela forma em sequência? Mesmo quando amanhece, o suspense continua em uma cena sem diálogos, mas com muita tensão, em uma rua em que seu comportamento causa surpresa (e as respostas continuam ausentes). Mesmo quando há um esclarecimento da sua motivação, a dúvida persiste, tanto quanto a expectativa: o que Shiva dirá depois de ver o que há no furgão? Aos poucos, a esse suspense mesmerizante é adicionado humor pessoal e situacional: as personagens são engraçadas per se; as situações em que se encontram são completamente inusitadas e se tornam cômicas por força do impensável do contexto e de suas condutas diante dele (vide a cena dos policiais).

Foi apenas um acidente” tem uma energia caótica cuja narrativa é construída como uma bola de neve em ritmo desgovernado. Entretanto, tudo é muito bem orquestrado por seu realizador, que faz questão de deixar claro que o assunto que trata é sério. No clímax, a luz vermelha e os diálogos escancaram que o momento é o de maior tensão. Quando tudo parece resolvido, o desfecho se apresenta arrebatador. Com mais perguntas que respostas, o filme é a tradução de um cinema que estimula a reflexão enquanto dirige as emoções de seu público como se isso fosse tarefa fácil. Para quem foi preso e torturado, pensar e emocionar, infelizmente, talvez não seja mais tão difícil.

* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).