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“FORD VS. FERRARI” – Não é um filme apenas para o seu nicho

Filmes de automobilismo esportivo geralmente funcionam muito bem em seu nicho – leia-se, com o seu público-alvo -, não conseguindo envolver, todavia, o público em geral. FORD VS. FERRARI consegue fazer diferente, sendo um filme atrativo também para os espectadores que não acompanham esse esporte.

Na década de 1960, almejando atingir o status da campeã Ferrari, a Ford decide participar de corridas automobilísticas. Para isso, contrata Carroll Shelby, um ex-piloto, dando-lhe carta branca para formar um time vencedor. Quando ele inclui o seu temperamental amigo, o piloto e engenheiro Ken Miles, a dupla começa a ter atritos com um dos principais dirigentes da empresa. É essa a história real retratada no filme.

Cartaz de “Ford vs. Ferrari

O longa começa em 1959, introduzindo Shelby, interpretado por um Matt Damon inspirado (o que não significa tanto assim). Seu arco dramático, referente a um problema cardíaco, é de pouca utilidade, tendo em vista apenas força a sua aposentadoria (seria interessante problematizar a questão, por exemplo colocando nele uma frustração por participar apenas dos bastidores). No mais, ele é engrenagem narrativa meramente funcional.

Ford vs. Ferrari” não é um filme sobre automobilismo esportivo, tampouco sobre a disputa entre as empresas. O script de Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller aborda vários assuntos, mas sua espinha dorsal repousa na amizade entre Shelby e Miles. O primeiro, mais flexível no trato interpessoal; o segundo, orgulhoso e raivoso até mesmo contra o amigo, que o apelida de Bulldog. Ambos amigos e parceiros de longa data.

Miles tem fama de temperamental, condição que o impede de conseguir trabalho como piloto de grandes marcas. Seu pavio é tão curto que até mesmo seu filho, interpretado pelo ótimo e carismático ator mirim Noah Jupe, o cutuca quando ele conhece Leo Beebe (Josh Lucas, razoável), seu algoz. Para uma personagem complexa, ninguém melhor que o excelente Christian Bale em mais um trabalho impecável (ainda que inferior a papéis anteriores, pois o piloto é um homem razoavelmente comum para os padrões de Bale em sua carreira). A esposa de Miles participa pouco, mas não é nenhuma donzela indefesa (a cena em que a convincente Caitriona Balfe dirige para coagir o marido é espetacular).

Dentre os assuntos que permeiam a narrativa está o poder do dinheiro. Ao contrário do que se pode imaginar, nem tudo gira em torno das finanças, como quando Shelby fala para Lee que todo o investimento possível pode não ser suficiente para vencer uma corrida. Como desdobramento da sua ideia de vitória, ele insiste em ter o melhor piloto – Miles, que ele defende perante todos e está sempre disposto a ajudar -, o que enseja um segundo subplot, relativo à disputa pelo poder dentro da Ford. Henry Ford II (Tracy Letts, provavelmente o melhor dos coadjuvantes) tem um discurso afiado que combina com a obsessão em fazer história como o seu ancestral, porém, na prática, quem toma a maioria das decisões é Leo. Em um jogo político interessante, Shelby e Leo disputam o poder decisório, o que rende cenas empolgantes e geralmente engraçadas.

O humor costuma acertar, já que contribui com a narrativa (como quando Shelby incomoda os italianos com os cronômetros e a porca). Há uma piada infantil entre Miles e Peter que destoa das demais, talvez um ato falho do roteiro. Trata-se de um equívoco, porém, plenamente escusável, dado que o script é sólido, não se limitando ao automobilismo (a parte da mecânica dos veículos é manifestamente um plano de fundo) e tratando até mesmo da rivalidade entre a Itália e os EUA. Sendo uma produção hollywoodiana, o desfecho é previsível mesmo para quem não conhece a história real. Outro equívoco do roteiro, um pouco mais grave, é criar uma “arma de Chekhov” sem utilizá-la (a conversa entre Peter e Phil sobre o perigo de o traje pegar fogo), além do excesso de personagens (Lee é um dos descartáveis, já que aparece no começo e vai reduzindo paulatinamente a importância).

A produção tem ainda atenção especial com dois elementos técnicos. O design de produção de François Audouy usa intensamente a cor vermelha (carro de Shelby, secretária de Ford, gravata de Shelby, pasta no escritório etc.), representando a Ferrari quase como um fantasma que assusta o grupo Ford. O azul, por óbvio, vai crescendo enquanto a empresa representada (a Ford) melhora nas corridas. Além disso, o figurino de Daniel Orlandi aquilata a caracterização de Miles e Shelby como contraposição: este com roupas elegantes, normalmente paletó e gravata, além de um chapéu de caubói (nada mais estadunidense que isso); aquele com roupas bem mais simples, muitas vezes na cor cinza e sujas de graxa. Até mesmo os óculos de sol são diferentes: o de Miles é de estilo esportivo, inteiro preto e de lente circular; o de Shelby é com armação quadrada e marrom, mais elegante.

James Mangold tem domínio da mise en scène, usando fartamente closes para enfatizar a emoção das personagens (salvo na sequência do clímax, prevalecem planos fechados). A estética constrói uma atmosfera que estimula o público a torcer pelos heróis, o que é elevado com a proximidade da ação (câmera junto ao carro) e com os intensos ruídos diegéticos próprios dos carros de corrida. Nessa imersão, a plateia é envolvida pelo filme de forma tal que ele, de alguma forma, emociona o público – não apenas seu nicho.