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“JOHN WICK: UM NOVO DIA PARA MATAR” – O universo mitológico de um assassino

*Clique aqui para ler a nossa crítica do primeiro filme da franquia, “De volta ao jogo“, de 2014.

Existem dois personagens do cinema de ação que contribuíram para a revitalização recente do gênero: Jason Bourne e John Wick. Cada um deles, em seus respectivos filmes, demonstraram que a adrenalina de sequências de perseguição, tiroteio ou confronto físico não vem, necessariamente, de uma montagem picotada, confusa e repleta de movimentos de câmera bruscos e descontrolados. Se o personagem de Keanu Reeves cativou diversos cinéfilos com o primeiro filme, em 2017, JOHN WICK: UM NOVO DIA PARA MATAR expandiu seu universo, dando ares mitológicos ao protagonista.    

A nova história se inicia imediatamente após os eventos da antecessora: John Wick, enfim, recupera seu carro e espera poder se aposentar. Entretanto, a reaparição de Santino D’Antonio frustra seus planos ao cobrar uma dívida contraída pelo assassino profissional para deixar seu posto na organização chamada Alta Cúpula. Santino insiste que a única forma de pagar a dívida é matando sua própria irmã Gianna. A partir daí, o protagonista se vê envolto novamente em uma missão violenta e brutal.

O elemento mitológico desse universo surge já na sequência de abertura, uma perseguição de carro que remonta ao estilo de ação do primeiro filme, dessa vez potencializada pela direção de Chad Stahelski. Assumindo a função sozinho (após a saída de David Leitch para filmar “Atômica” e “Deadpool 2“), ele constrói a ação a partir do encadeamento de planos gerais e fechados de modo a transmitir a adrenalina das situações sem abrir mão da organização geográfica do espaço fílmico – na já referida perseguição automobilística, a cena se inicia com a projeção dos acontecimentos na lateral de um prédio e avança para o asfalto. Além disso, o diretor não oculta as colisões e agressões através de sucessivos cortes, preferindo coreografar as sequências para aproximar a câmera desses momentos – uma decisão que estiliza as imagens e as tornam praticamente saídas de uma realidade imaginada.      

As escolhas visuais do cineasta não seriam possíveis sem o excelente trabalho de coreografia e coordenação de dublês. Sequências de troca de tiros e de luta corporal possuem movimentos muito calculados e precisos, capazes de fazer o público sentir com grande dose de realismo os impactos dos golpes e o cansaço dos extenuantes confrontos – nesse sentido, os socos, chutes e usos das armas são feitos como se fossem um balé particular que desenha um tipo de violência muito agressivo e calculado, capaz de mirar os pontos mais vulneráveis do corpo humano. À medida que a ação se desenrola, a sensação de estar assistindo a uma história fantástica (no sentido de além da realidade terrena) se multiplica, ainda que exista um esforço de realismo muito grande, como se pode perceber na tentativa de captura de John Wick no segundo ato que se assemelha a um jogo de videogame.   

Em termos temáticos, a narrativa intensifica o aspecto mitológico da produção ao expandir o que já havia sido feito no primeiro filme. Não se trata de uma trama complexa ou sequer original, afinal muitos roteiros sobre um assassino não conseguindo deixar para trás sua vida de crimes já foram escritos, mas porque o universo muito próprio apenas sugerido até então é desenvolvido de maneira instigante e imprevisível. É curioso e interessante acompanhar e compreender as regras que rodeiam o grupo de assassinos que forma a Alta Cúpula: as promissórias sob a forma de moedas estilizadas que representam as dívidas a serem pagas; a proibição de violência no hotel base de operações; os procedimentos organizados para comunicar a recompensa pela morte de alguém ou a expulsão da organização; os contatos para encomendar roupas ou armas; o código de conduta que se espera dos assassinos.  

Além do roteiro e das opções de direção, o que mais reforça a áurea fantástica e fabulesca é John Wick. Suas aparições nos primeiros minutos são indicadas por uma câmera que o enquadra da cintura para baixo e ou por sombras que ocultam suas expressões e movimentos, algo ainda mais misterioso e ameaçador graças à narração de um dos personagens chamando atenção para as habilidades sobre-humanas do personagem. Ao longo de toda a narrativa, referências sobrenaturais são feitas a ele (espírito, demônio, bicho-papão…) e a atuação de Keanu Reeves solidifica essas impressões ao valorizar sua dicção pausada e grave e também se dedicar fortemente às coreografias de lutas e tiros. Inclusive, existe uma recompensa para o espectador que até então apenas imaginava a cena da morte de dois inimigos usando um lápis quando ela é feita para reforçar a lenda em torno de John Wick.  

Ainda conseguindo dar atenção à parte estética de suas sequências, investindo em luzes estilizadas como na luta na sala de espelhos e em cores frias e melancólicas como no momento da destruição da casa do protagonista, “John Wick: Um novo dia para matar” contribui para os filmes de ação sem precisar reinventar tramas ou temas. O exemplo que ele deixa é o seguinte: é possível combinar um personagem marcante para o gênero, um enredo simples, um universo bem construído e ação bem filmada. Tantos pontos bem sucedidos que a abertura para um terceiro capítulo, a ser lançado em 2019, deixa os espectadores entusiasmados. Sentimento que nem toda franquia é capaz de evocar.