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LA CASA DE PAPEL [1ª temporada] – Um castelo de cartas

Como o título indica, a premissa de LA CASA DE PAPEL gira em torno de um assalto à Casa da Moeda espanhola. Para isso, o autointitulado Professor (Álvaro Morte) recruta oito ladrões, cada um com sua área de expertise e codinome: Tokio (Úrsula Corberó), Moscú (Paco Tous), Berlín (Pedro Alonso), Nairobi (Alba Flores), Río (Miguel Herrán), Denver (Jaime Lorente), Helsinki (Darko Peric) e Oslo (Joseph Whimms). Essencialmente, a série alterna entre cenas que mostram a efetivação do roubo e flashbacks que revelam o seu planejamento, tudo entrecortado pelas relações estabelecidas entre ladrões, reféns e a polícia.

No primeiro episódio o Professor já estabelece uma das condições imprescindíveis ao triunfo: a opinião pública precisa estar ao seu lado. Essa premissa pode ser estendida para fora da narrativa, uma vez que reflete o segredo para o sucesso da série (e, em sentido amplo, dos filmes de heist como um todo). É essencial que os assaltantes sejam figuras humanizadas e de alguma forma identificáveis, para que o público sinta pelos seus destinos e torça para que tudo dê certo. Aliada a isso está a inserção da narrativa em uma lógica Robin Hood de questionamento do sistema de distribuição de renda: eles não estão roubando a população diretamente, e sim se apropriando do sistema de impressão de dinheiro. Essa lógica questionadora é exacerbada pelo uso da música Bella Ciao, por exemplo, e até mesmo na designação do personagem Arturito (Enrique Arce) como refém antagonista, já que a sua primeira aparição é marcada por uma atitude deplorável.

Apesar de não ser uma produção original Netflix, foi ela a empresa que editou a versão que disponibiliza em seu próprio catálogo, com a divisão em duas partes e o tempo dos episódios cortado para atender ao formato convencional do seu público. Assim, é evidente que “La Casa de Papel” se insere na lógica de streaming feito para a televisão: há uma abundância de cliffhangers que procuram prender a atenção do espectador a todo episódio – para que outra série não a fisgue. Por mais que esta seja uma forma eficiente de atiçar a curiosidade, o uso em excesso faz com que a técnica pareça cansativa e, muitas vezes, forçada.

Ainda sobre a produção para a televisão, há uma abundância de primeiros planos que, embora típica do formato, às vezes chega a ser enfadonha e, especialmente nas sequências de ação, pode fazer com que tudo fique um pouco confuso. Há passagens, entretanto, com uma autoconsciência desse enquadramento que cria brincadeiras interessantes: um bom exemplo disso está no primeiro episódio, quando a câmera se afasta do rosto de uma personagem para revelar a presença de policiais monitorando uma ligação. Nesse momento específico, é uma pena que a abertura do plano se dê justamente quando é perguntado se a personagem “está sozinha”, o que tira um pouco do poder do movimento da câmera, que seria eficiente por si só.

Infelizmente, esses momentos de reiteração desnecessária do que é mostrado através de diálogos expositivos são frequentes, o que parece subestimar a inteligência do espectador. Um exemplo disso é a montagem paralela de um discurso dado por Berlín e a descrição da sua personalidade feita pelo Policial Ángel (Fernando Soto). Todas as características lidas são exemplificadas pela própria construção daquele personagem, portanto, não haveria necessidade de repeti-las. Além disso, a narração do que é mostrado tira um pouco da força do discurso de Berlín. Esse é só um exemplo mais marcante, mas há vários momentos com o mesmo defeito ao longo da série (se a palavra “espasmos” é dita, certamente será mostrada na cena seguinte; e se um personagem coça muito o nariz, logo em seguida será descrito como envolvido com drogas).

Quanto ao roteiro, por ser uma obra do subgênero heist (como os ótimos “Cães de aluguel” e ” O plano perfeito“, que certamente foram fontes de inspiração), o sucesso da narrativa depende da engenhosidade do plano. Infelizmente, a partir da metade da primeira parte, o planejamento parece cada vez mais se respaldar no acaso e, em alguns momentos, no simples absurdo, o que faz com que a qualidade da série caia muito. Ainda, há vários questionamentos que, ao menos até o final da primeira parte, permanecem sem resposta.

Ora, depois de tanto tempo de sequestro com reféns, enfrentamentos com a polícia e saraivadas de tiros, por que a opinião pública permaneceria ao lado dos assaltantes? Por que características essenciais para a superação de certos obstáculos (como a fabricação de sidra e as anotações do tempo provável de sentença no braço de um dos personagens) não foram apresentadas antes? Outro ponto especialmente bizarro é a facilidade para apagar um retrato falado dos registros da polícia – por que o policial que o desenhou não seria capaz de refazê-lo e que tipo de editor de imagens possui uma função de deletar tão acessível e irreversível? Além disso, qual é a doença da mãe da Inspetora Raquel (Itziar Ituño), que permite que uma lembrança seja apagada quase que instantaneamente, mas, ao mesmo tempo, possibilita que ela cuide da casa e da sua neta?

Esses pontos comprometem não só a credibilidade do plano elaborado como a inteligência do Professor e, no geral, a própria construção dos personagens. A partir de certo ponto, fica evidente que cada um deles resume-se a uma característica: a femme fatale, o ingênuo, o impulsivo, o cínico… Aliás, a impressão que dá é que a construção dos personagens foi adequada às necessidades de desenvolvimento da história, o que cria figuras unilaterais cujas reações não são críveis. As relações estabelecidas entre os reféns e os assaltantes também não chegam a parecer convincentes, ainda que se considere uma possível epidemia de síndromes de Estocolmo.

 Por outro lado, a criação de personagens simples pode, vá lá, criar figuras estilizadas. E é esse um dos pontos fortes de La Casa de Papel: a estética. Os macacões vermelhos e as máscaras de Dalí se transformaram em ícones de tal forma que geraram imitações na vida real, de roubos que, por óbvio, não funcionaram. Aliás, o fato de ter sido Dalí o escolhido vem bem a calhar, já que o seu surrealismo está presente na trama.

Como entretenimento, La Casa de Papel funciona bem. Cada um dos seus episódios consegue construir tensão de forma separada e de modo eficiente, e nunca deixamos de sentir curiosidade sobre o futuro do bando – por mais incríveis que os desdobramentos sejam. Além disso, as sequências de comédia ou desenvolvimento emocional dos personagens oferecem um alívio bem-vindo à narrativa, dando um novo fôlego à trama do assalto. No entanto, as falhas na sua construção não permitem que vá muito além da diversão, e nos fazem questionar se esse plano realmente funcionaria.