“MEMÓRIAS DE UM CARACOL” – Melancólica beleza da animação
A parte do público que considera os filmes de animação restritos para as crianças não deve conhecer “Valsa com Bashir“, “Persepolis“, “Planeta fantástico“, “Uma história de amor e fúria” e outros exemplos. Em comum, todos trazem temáticas densas e experimentações estéticas mais indicadas aos adultos. A técnica possibilita diferentes usos e efeitos que vão além do lúdico infantil. Adam Elliot é um cineasta que explora essas possibilidades, como se pode perceber em sua obra mais conhecida “Mary e Max – uma amizade diferente” e seu mais recente trabalho MEMÓRIAS DE UM CARACOL. O estilo de animação evidencia uma relação sensível entre beleza e melancolia, na qual as duas categorias se influenciam reciprocamente.

Na Austrália dos anos 1970, o belo e o melancólico fazem parte da história de vida dos irmãos gêmeos Grace e Gilbert. Eles estão cercados pela tragédia de perder a mãe no parto, de cuidar do pai alcoólatra e tetraplégico e de ser separados em famílias adotivas diferentes após a morte do pai. Enquanto Gilbert sofre em um lar fundamentalista religioso, Grace encontra conforto na sua inusitada coleção de caracóis e na amizade com a excêntrica senhora Pinky. Na distância geográfica de suas vidas, as correspondências trocadas pelos irmãos alimentam a esperança de que possam se reencontrar.
Adam Elliot tem uma assinatura visual marcante em função da maneira como trabalha a animação em stop motion de traços góticos ou de cores dessaturadas. O processo de animação artesanal feito sem grandes efeitos computadorizados e dotado de uma estética muito própria já havia aparecido em “Mary e Max – Uma amizade diferente“, sendo novamente explorada para dar nuances temáticas e estilísticas às trajetórias de Grace e Gilbert. O stop motion desperta um fascínio em si mesmo por conta de suas etapas de realização e do efeito imagético isolado produzido, mas os benefícios para a narrativa não se resumem à técnica pela técnica. O esmero na composição dos quadros, dos personagens e dos objetos cênicos através, por exemplo, de litros de lubrificante para as lágrimas e de papel celofane para o fogo, pode indicar a valorização de figuras excluídas, solitárias, empobrecidas, violentadas e desajeitadas socialmente, que merecem ter suas histórias contadas e ouvidas com empatia.
Em paralelo, a abordagem visual também combina a alegria e a tristeza, a beleza e a melancolia pela aproximação de elementos díspares nas vidas dos irmãos protagonistas. Eles dividem as dores e os sofrimentos de perderem precocemente a mãe, estarem em contato com as doenças e infortúnios profissionais do pai, serem alvo tanto de humilhações quanto de agressões físicas na escola e sofrerem com várias dificuldades econômicas. A partir da narração de Grace, dublada por Sarah Snook, o público está diante de crônicas cotidianas sobre morte, solidão, alcoolismo, pobreza, preconceito e violência que afetam crianças que não deveriam passar por tantos eventos destrutivos em tão tenra idade. É curioso, inclusive, notar que a imaturidade proporciona momentos singelos de humor, como a cena em que uma simples transfusão de sangue é entendida por Gilbert como um sacrifício mortal e as sequências em que Grace desconhece o significado de atitudes dos adultos (a masturbação de um juiz e a prática sexual do swing, por exemplo). Mesmo assim, os dois experimentam momentos prazerosos em família, como o passeio em um parque de diversões com o pai, e cultivam uma relação de cumplicidade, quando assistem a TV, leem seus livros favoritos, brincam com artigos de magia e acham passatempos inusitados.
Os encontros entre lágrimas e sorrisos acompanham as interações com os personagens coadjuvantes e as trajetórias separadas dos irmãos. Nas cartas escritas por Gilbert, dublado por Kodi Smit-McPhee, a família adotiva formada por um casal fanático religioso que concebe qualquer ação indesejada como fruto de influência demoníaca transforma a vida do jovem em um inferno. Nesse momento, Adam Elliot critica o fundamentalismo religioso e a homofobia que recaem de forma agressiva sobre Gilbert. Enquanto isso, Grace atravessa uma jornada mais variável e complexa, pois sofre com a distância emocional dos pais adotivos embora não sejam violentos. Ela se sente sozinha como se fosse invisível, lamentando o fato de não conseguir relacionamentos amorosos. Quando parece encontrar o parceiro ideal, a frustração vem após uma descoberta impactante. No momento menos esperado, encontra a amizade sincera de Pinky, uma senhora excêntrica que proporciona ótimas sequências de humor e drama na metade final da obra. As diferentes profissões e casamentos que teve, assim como os cuidados oferecidos a Grace, criam uma dimensão de beleza, que logo se abre para uma dimensão de melancolia devido aos efeitos da velhice.
É verdade que o cineasta aposta menos na sutileza e no subtexto como já fez anteriormente. Uma carta escrita pela senhora Pinky e lida no último ato parece ter que resumir tudo o que era construído até então sem diálogos e construções de cena expositivos. Ocasionalmente, algumas metáforas visuais dependem de um apelo óbvio, como as imagens articuladas em torno de Ken para a revelação de sua reviravolta, ou confiam pouco na assimilação pelos espectadores, como o paralelismo entre Grace e os caracóis. A aproximação entre eles pode seguir diferentes possibilidades, podendo ser um vínculo emocional com as lembranças familiares, um sintoma de transtorno emocional de acumulação e estagnação, a construção de uma carapaça protetora contra medos e riscos e um alerta para se colocar em movimento a despeito das circunstâncias. A metáfora se enriquece justamente porque abraça leituras diversas sem ser incoerente e suscita simbolicamente a fusão entre a beleza e a melancolia. Mesmo que não traga grandes prejuízos, Adam Elliot cria algumas passagens visuais que insistem explicitamente em uma mensagem já absorvida pela via das emoções.
De forma similar a “Mary e Max – uma amizade diferente“, “Memórias de um caracol” se sai muito bem na operação de afetar emocionalmente os espectadores a partir de uma história povoada por situações e personagens excêntricos. Torna-se, então, difícil não se envolver com Grace e Gilbert e experimentar as sensações conflitantes propostas. O diretor transita com elegância pelo drama, pelo humor mórbido ou, no mínimo, pelo estranho e pelo terror dentro de um universo em que o belo e o melancólico não são inimigos. A beleza se manifesta pela consciência de que a alegria não é eterna e pode conviver com a tristeza, já a melancolia carrega um sentimento complexo de contemplação ou reconhecimento da dor como algo inerente que não deve ser eliminada a qualquer custo. Não é um trabalho fácil equilibrar essas experiências, porém o filme tem uma sensibilidade que faz com que a animação esteja a serviço do encontro entre a beleza e a melancolia. A linguagem visual incorpora o que os personagens passam e sintetiza a descarga emocional em mais um encontro inesperado entre pessoas, cinema e caracóis tantos anos depois.
