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“MOGLI: ENTRE DOIS MUNDOS” – Transformando um personagem

O livro da selva” foi escrito por Rudyard Kipling em 1894 em um formato de sete contos, dentre os quais, três relatam a história de Mogli, um menino indiano criado por lobos. A popularidade do personagem cresceu de tal forma que o cinema se interessou pela adaptação da fábula em diversas ocasiões, produzindo leituras e releituras diferentes dependendo do contexto. A mais recente releitura foi MOGLI: ENTRE DOIS MUNDOS, feita por Andy Serkis diretamente para a Netflix, imprimindo à versão de 2018 uma proposta madura e sombria inédita para o público.

Nesse novo filme, Mogli é salvo da morte pela pantera Bagheera e levado para uma alcateia em meio à floresta para ser criado pelos lobos. Ele conta com a amizade da pantera, do urso Balu e dos lobos, mesmo tendo dificuldade para se integrar completamente na alcateia. Quando se defronta com suas origens humanas, Mogli passa a ser ameaçado pelo tigre Shere Khan. A direção de Andy Serkis é um dos elementos responsáveis pelo tom adulto da narrativa: sua câmera mergulha no ambiente, nas lutas e nas corridas dos animais, assim como apresenta a selva e a relação entre os personagens com forte carga séria e dramática. Além disso, a fotografia de um azul dessaturado e de uma escuridão soturna complementam esse estilo.

A escolha estilística do diretor consegue ser, ao mesmo tempo, sua marca própria e sua perdição. O maior problema da obra é o excesso de sequências sombrias que constroem personagens severos e situações amedrontadoras – é possível perceber tais circunstâncias através da caracterização agressiva e ríspida do urso Balu e da ambientação lúgubre em torno das sequências de ação com os macacos. Ao pesar a mão na densidade dramática e sombria de sua proposta, Andy Serkis deixa em segundo plano o caráter lúdico que está na base da história original.   

Esse aspecto predominante é logo estabelecido no prólogo com a narração em off da serpente Kaa, que anuncia o importante destino de Mogli a partir de uma sonoridade grandiosa e mítica. Ao longo da narrativa, outros recursos cumprem a mesma função: as sequências de ação são violentas, já que os ferimentos são mostrados sem ressalvas e o sangue é visto nitidamente; a selva é construída de modo intimidador pelo design de produção, que investe em galhos retorcidos e em um aspecto sujo (ainda que alguns planos enfoquem a beleza e as cores fortes do lugar); e a personalidade de alguns animais é tornada muito séria, como é feito com Balu e com Shere Khan (sendo reforçada a caracterização ameaçadora do vilão através do ferimento em sua pata que o faz arrastá-la pelo solo).

As comparações entre”Mogli: Entre dois mundos“e o Mogli da Disney, lançado em 2016, são inevitáveis pela proximidade cronológica e não se esgotam apenas na abordagem. Diferentemente de seu antecessor, o filme de Andy Serkis não pretende transmitir uma veracidade absoluta com os animais, mas sim um caráter fabulesco de características soturnas – as criaturas são criadas com traços estilizados e cores saturadas. O realismo fica por conta de suas ações e sentimentos, humanizados pelas contradições emocionais que possuem e pela técnica de captura de movimento (em especial, a feita por Andy Serkis para Balu). Dando voz aos animais, há um elenco estelar em Hollywood com destaque para Cate Blanchett, como a ardilosa serpente Kaa, e para Benedict Cumberbatch, como o perigoso tigre Shere Khan.

O próprio protagonista é concebido de outra maneira, tendo um arco dramático demarcado pela composição física do personagem: inicialmente, ele aparece integrado à floresta graças ao longo cabelo selvagem, ao corpo constantemente sujo de lama ou de sangue e às suas tentativas de correr como um quadrúpede; em seguida, quando se afasta dos animais e chega à vila dos homens, está ereto, aprende a pular entre os galhos das árvores, prende o cabelo e usa roupas; ao final, praticamente se torna um guerreiro da selva, nem homem nem lobo, tendo um código próprio para a violência e a cor da pele resultante da mistura da pintura dos humanos, do sangue e outras substâncias da natureza. O ator Rohan Chand é atlético o suficiente para as sequências de ação, porém lhe falta força dramática para os momentos conflituosos ou emocionantes.

Em termos temáticos, a obra opta por abordar o tratamento preconceituoso dispensado ao diferente e como isso afeta seu pertencimento a uma coletividade. Mogli é sempre chamado de esquisito por alguns lobos; visto como uma potencial ameaça por ser filhote de homem; tratado, inicialmente, como uma criatura selvagem e hostil pelos humanos; inserido, posteriormente, à sociedade, porém não se sente integrado plenamente ao presenciar a violência de um caçador aos animais. Há também um lobo albino, vítima do escárnio dos outros de sua espécie por ser fisicamente diferente.

Mogli: Entre dois mundos” tem uma proposta arriscada de reinventar a atmosfera da história e do protagonista clássicos, dando a eles contornos adultos e sombrios. O risco corrido é elogiável, – principalmente por conter elementos narrativos e estéticos bem pensados e executados – mas escorrega em uma dose de seriedade e dramaticidade que não combinam exatamente com o personagem. Uma aventura com identidade própria, que possui como problema uma personalidade forte muito exacerbada, mas ainda capaz de atingir um resultado eficiente.