“NE ZHA” – Ação visualmente arrebatadora
Não são incomuns os comentários elogiosos de espectadores que conseguem ter acesso a filmes de animação diversificados e fora de círculos sociais hegemônicos. É assim que se pode perceber que não se trata de um estilo restrito ao público infantil, concentrado em grandes empresas hollywoodianas e feito apenas nos EUA. NE ZHA é um bom exemplo de uma animação chinesa que sintetiza a diversidade de possibilidades para essa abordagem, unindo comédia, ação, mitologia nacional e esmero formal em uma narrativa distinta do que se vê costumeiramente.

Ne Zha é o nome a um jovem prodígio que nasceu da união de uma pérola celestial e o coração de um demônio. Ele está, em teoria, destinado a trazer a destruição ao mundo, mas luta contra seu destino. Enquanto tenta criar um rumo diferente para sua vida e evitar um desfecho trágico, o protagonista conta com a ajuda dos pais Li Jing e Lady Yin e do deus imortal Master Taiyi para deixar de ser odiado pelos habitantes locais. Em contrapartida, o aparecimento do deus Shen Gongbao e do jovem Ao Bing podem causar obstáculos nesses planos.
Alguns questionamentos à dramaturgia da obra circularam. O diretor e roteirista Yang Yu não se preocupa com uma construção dramática muito complexa, algo que não é um problema a priori. Os temas e conflitos em torno de Ne Zha são diretos e trabalhados com uma economia narrativa. Então, não é difícil notar que a autoaceitação, o julgamento depreciativo do outro, a impulsividade de adolescentes e a busca por um lugar no mundo são questões importantes para os embates entre os personagens e a evolução dramática deles. É verdade que são vários aspectos a serem desenvolvidos, fazendo com que alguns tenham mais tempo de tela do que outros e até sigam uma progressão, por vezes, repetitiva. Por exemplo, a dinâmica entre o protagonista e sua família é o elemento mais recorrente, que gira em torno das consequências do temperamento intempestivo do jovem.
O drama familiar tem grande relevância como subtexto simbólico que preenche boa parte da narrativa. Os sacrifícios de Li Jing e Lady Yin dão o tom de uma relação paternal que tenta manter sob controle a origem demoníaca do filho e incentivá-lo a trilhar outros caminhos em sua vida, de modo a ser aceito pela população local. Em outra dimensão simbólica, as interações entre Ne Zha e Ao Bing possuem grande potencial, nem sempre exploradas ao máximo, mas capazes de evidenciar diferentes sentidos. Isso porque eles são duas faces espelhadas da mesma moeda porque nasceram da mesma criatura intitulada Caos Primordial, o que os faria ser irmãos de certa maneira. Além disso, o surgimento de uma amizade entre eles ocorre em meio à dualidade entre personagens que estão destinados a se enfrentarem até a morte e compartilham os mesmos sentimentos de exclusão e solidão. Embora essa relação afetiva não seja tão aprofundada, os dois jovens também ressignificam a divisão binária entre mocinhos e vilões, já que eles se alternam nas duas posições sem delimitá-los de forma rígida ou unidimensional.
Por mais que seja possível analisar a construção temática ou dramática, a animação se sobressai devido às escolhas formais de Yang Yu. A composição visual do universo fílmico e das cenas é arrebatadora para os olhares porque contribui para a construção de uma mitologia muito particular. A abertura é eficiente para estabelecer as regras daquele mundo fabular, caracterizado pela junção entre tradições culturais milenares, crenças místicas com deuses politeístas, dinastias políticas, comunidades populares da China e traços ficcionais para uma história fantástica. As cores vermelha e azul predominam para representar Ne Zha e Ao Bing, as duas facetas complementares do Caos Primordial, não só porque se complementam em termos estéticos como também marcam uma oposição entre eles, as realidades onde cresceram e os dois mestres que os treinaram. A construção da mitologia depende igualmente da criação de cenários facilmente diferenciados, como o mundo colorido pintado com um pincel mágico pelo mestre Taiyi, o submundo aquático sombrio ocupado por Ao Bing, o mestre Shen Gongbao e dragões ali confinados e a vila chinesa em ruínas pelos confrontos entre os protagonistas e por tempestades mágicas
Em outros níveis, a beleza visual da animação e dos efeitos visuais computadorizados ressalta os estados emocionais de determinados personagens em momentos específicos. Um exemplo muito marcante é a sequência em que Ne Zha e Ao Bing se conhecem, quando salvam uma criança raptada por um monstro. Mesmo que seja uma oportunidade de explorar um humor infantilizado e escatológico – já existente em outras passagens ao redor do mestre Taiyi -, a aliança improvável entre os desconhecidos para enfrentar a criatura é o ponto de partida para uma aproximação entre os jovens. Eles começam a formar um vínculo desde o instante em que Ne Zha salva a vida de Ao Bing e, rapidamente, tornam-se amigos porque veem um no outro a companhia que lhes faltava. A amizade instantânea proporciona um momento singelo em que comove os espectadores: eles brincam diante do mar, visivelmente satisfeitos por não se sentirem mais tão sozinhos, tendo ao fundo a imagem estilizada do por do sol. A intensidade dos raios solares e a combinação do astro com a beleza da praia são suficientes para indicar o estado de espírito de ambos.
Acima de tudo, o maior mérito de “Ne Zha” está na forma como o filme integra deleite estético e experiência sensorial através da coreografia de sequências de ação visualmente expressivas. A composição visual dos personagens, das lutas, dos cenários vai além de funções pragmáticas dentro da animação. Ao mesmo tempo que ajuda a criar a mitologia do universo fílmico e demonstrar as variações emocionais dos personagens, a estética também é pensada para ser apreciada em função de sua beleza isolada e da construção de um conjunto geral dotado de uma identidade bem definida. O cuidado formal se intensifica quando Yang Yu constrói sequências de lutas corporais coreografadas com inventividade, seja por causa do uso dos espaço, das cores e dos objetos cênicos dentro dos confrontos, seja por causa da movimentação fluida da câmera por todo o ambiente e pelos gestos dos adversários em combates. Em síntese, a obra cria imagens grandiosas que elevam a ação para grandes proporções visuais, narrativas e dramáticas. São os vários os exemplos de planos abertos que poderiam ser emoldurados para expressar o auge emocional das trajetórias de Ne Zha e Ao Bing e coroar o arrebatamento estético da animação.



