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“NO CAMINHO” – Os caminhos da vida não são como eu pensava [49 MICSP]

“Os caminhos da vida / Não são como eu pensava / Como os imaginava / Não são como eu acreditava / Os caminhos da vida / São muito difíceis de andar / Difíceis de caminhar / E não encontro a saída”. Este é um trecho (em tradução livre) da música “Los caminos de la vida”, canção de 1983 presente em um momento-chave do romance em formato de road movie NO CAMINHO, que ao longa serve também como representação simbólica das dificuldades enfrentadas por suas personagens.

Veneno é um jovem andarilho que frequenta lanchonetes de beira de estrada para se relacionar com caminhoneiros. Em uma delas, conhece Muñeco, um homem reservado que, relutante, aceita lhe dar carona após ser convencido de que terá benefícios pessoais. O início da parceria dos dois promove intimidade, mas o passado de Veneno coloca suas vidas em grande risco.

(© Animal de Luz Films / Divulgação)

Em uma primeira camada, o diretor e roteirista David Pablos constrói em “No caminho” um road movie sobre os perigos do mundo das drogas para os usuários e, principalmente, para quem se envolve com os cartéis. Em uma camada mais profunda, há um conto sobre o universo dos caminhoneiros, do qual as drogas não guardam muita distância e no qual o sexo é um meio para aliviar quaisquer tensões, sempre à luz de uma visão machista (ao menos nas aparências) do mundo. Por fim, na camada mais nuclear do longa, onde a sexualidade é pulsante e os sentimentos afloram à revelia da própria vontade, há um romance que cresce e endurece tal como uma ereção inevitável e indesejada.

O importante em “No caminho”, portanto, é o romance entre Veneno e Muñeco, de modo que a parte das drogas e a trama envolvendo o cartel serve apenas para movimentar a narrativa. Não por outra razão, inexiste aprofundamento no lado antagonista ou mesmo em relação às demais personagens. Victor Prieto Simental imprime em Veneno um olhar sério que tenta mascarar a própria fragilidade diante de uma situação desesperadora. Seu backstory sofrido é traduzido pela cicatriz na parte externa da coxa, o que não o impede de ser carinhoso. Pelo contrário, independentemente do sexo, Veneno é afável com Muñeco, o suficiente para cuidar dele quando está doente e para abraçá-lo em um momento de grande ternura. Inicialmente, Osvaldo Sanchez tem em Muñeco um ser quase colocado em um pedestal pelo protagonista, alguém próximo o suficiente para mostrar o pênis ao urinar e para tomar banho junto de Veneno, mas distante demais para ser alcançado (como na cena em que, sem camisa, limpa a parte da frente do caminhão, aparecendo na contraluz e de cima do veículo, como se fosse uma entidade superior). Progressivamente, contudo, Muñeco revela as suas próprias fragilidades (embora nem sempre as revela para Veneno, vide a cena com a mulher no ferro-velho) e uma história pregressa que lhe causa tristeza.

Do ponto de vista cronológico, a história parte de premissas freudianas, seja na memória de Veneno acerca do pai – que explica a atração que sente por homens absolutamente diferentes dele (por seu rosto liso, cabelos pretos, os brincos etc.) -, seja no envolvimento com um homem misterioso que literalmente expressa a vontade de ser um pai que o usa como objeto. A narrativa, porém, é elaborada com flashes (sem esclarecer de antemão se são flashbacks, flashforwards ou alucinações decorrentes do uso de drogas) sobre esses elementos do passado, ao mesmo tempo em que é norteada pelo romance sensual entre Veneno e Muñeco, relação que também tem um quê freudiano considerando que o segundo tem um papel tão romântico-sexual quanto paterno para o primeiro (como na cena que o protege de um caminhoneiro por vender drogas).

Despudorada, a direção expõe ereções e ejaculações de maneira crua, mas não por isso se torna apelativa. Sob uma fotografia que privilegia tons amarelados (as cenas no pôr do sol, o deserto arenoso, a cor da pele das personagens…) e uma trilha musical com muita salsa, Pablos desenvolve a progressão do romance no ritmo da progressão sexual. Assim, o primeiro beijo não é tão intenso quanto o segundo, assim como o primeiro sexo deixa os corpos de Veneno e Muñeco mais distantes do que depois (e a dança exerce uma função relevante para a aproximação). A intimidade cresce o suficiente para que se desnudem, literal e metaforicamente, um perante o outro, para compartilhar os traumas do pretérito e as tensões do presente, e, quem sabe, pavimentar uma estrada melhor para os caminhos de suas vidas no futuro.

* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).