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“NO CORAÇÃO DAS TREVAS” – Exercício interpretativo

O espectador que assiste a NO CORAÇÃO DAS TREVAS pode até não gostar do filme, mas certamente não fica indiferente a ele. O mero fato de exigir uma interpretação para o final fazer sentido já o torna um desafio estimulante para qualquer cinéfilo. Quando acaba a sessão, o filme não se encerra – e é essa a sua beleza artística.

O protagonista do longa é um ex-militar, o agora Reverendo Toller, responsável por organizar um importante evento prestes a acontecer na sua igreja. Apesar de se culpar pelo falecimento do filho, ele prossegue sua vida e continua suas atividades na igreja, fazendo amizade com Mary, uma mulher que pede sua ajuda para seu marido, um ambientalista radical que está desencantado com a humanidade. O pedido se torna um desafio na medida em que Toller entende o ponto de vista do marido de Mary.

O roteiro é escrito por Paul Schrader, também responsável pela direção, que enriquece seu longa com inúmeros simbolismos. Trata-se de uma obra extremamente polissêmica, o que significa que as interpretações de um indivíduo podem ser diametralmente opostas às de outro.

Cartaz de “No coração das trevas

É importante mencionar Schrader porque foi ele quem roteirizou os clássicos “Taxi driver” e “Touro indomável” (dentre outros filmes não tão memoráveis e nem tão similares), cujos textos adotam a mesma premissa narrativa de privilegiar um estudo de personagem, mesmo sem desenvolver de maneira robusta um desenrolar de acontecimentos. De certa forma, a película gera no público a expectativa de explosão, o que não necessariamente ocorre, ao menos não nos moldes esperados.

Se Max Weber tem em seu livro “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo” um exame denso sobre a relação entre a religiosidade (representada pela reforma protestante) e a formação das bases do capitalismo moderno, Schrader dá em seu filme “No coração das trevas” um olhar artístico exatamente sobre o mesmo tema – ou, mais precisamente, sobre a relação espúria entre o espírito capitalista e a igreja reformada (daí o título original “First reformed”).

Na teologia calvinista, o acúmulo de riquezas é mera consequência: o fiel tem uma vocação para determinada função (trabalho), está predestinado a ela e tem o dever de dedicar-se a ela, tendo nessa disciplina “efeitos colaterais” como o lucro e (de maneira subsequente) uma nova mentalidade ascética – esta bastante simpática ao trabalho e seu corolário, o enriquecimento. Para muitos especialistas, o calvinismo facilitou o desenvolvimento da economia nos contornos de hoje (inclusive quanto à voracidade).

Hoje, contudo, a relação entre igreja e economia é um pouco diferente – o que Schrader fez foi dar uma visão contemporânea (e crítica) dos resultados, tendo por foco a preocupação ambiental. (Caso o leitor não tenha visto o filme, sugere-se pular este parágrafo para não ler indesejáveis spoilers) O Reverendo Toller aglomera cada vez mais insatisfação para com a igreja, admitindo ao final sacrificar-se em prol de um bem maior. Adotando uma premissa calvinista, ele se viu predestinado àquilo, sobretudo ao vislumbrar sua iminente morte. Quando vê Mary (pela janela), abandona completamente a ideia e chega a se martirizar pela sua própria fraqueza profana ao sentir afeto por ela (afeto que evidentemente não nasceu naquele momento). Não é a fé que ele abandona, afinal, permanece com as vestes consagradas (quando ela chega, ele ainda está com aquele traje). Ao beijá-la, o que ele faz é aceitar seu inafastável destino – o que ele já tinha percebido na maravilhosa cena da levitação – que é se unir a ela. Depois? Tanto faz, pois o que importa é que ele abraçou o próprio desejo, a despeito de todo o resto (o que inclui o inconformismo ambiental e religioso).

Ethan Hawke tem no Reverendo Toller um dos papéis mais difíceis de sua elogiável carreira. Não é fácil interpretar um papel que já tem um conflito interno (a morte do filho) e absorve outros conflitos internos (que não se reduzem à já avantajada preocupação ambiental) para chegar a embates externos (a conversa hostil com Ed é elucidativa sobre essa caminhada). É uma interpretação de dentro para fora, de modo que o ator expõe a deterioração de Toller através de um incrível trabalho de voz (que fica mais fraca e mais rouca no transcorrer da narrativa). Amanda Seyfried também é ótima como Mary, um papel esfíngico (quase que literalmente).

Na direção, Schrader não exagera nos recursos estilísticos, salvo a razão de aspecto reduzida, forma encontrada para se referir a um assunto nada novo. Minimalista na mise en scène, os cenários são bem singelos (a sala da casa de Toller se reduz a um lustre, uma churrasqueira e uma cadeira; a igreja também tem estética bem clean, com espaço reduzido e pouquíssimos adereços) e os planos são majoritariamente médios e closes, aproximando as personagens do público. Na fotografia, prevalecem cores frias, corroboradas com o figurino invernal, para harmonização com o contexto.

No coração das trevas” não é um filme fácil ou mesmo didático. Os diálogos são porventura intrincados (retomá-los pode ajudar a compreender a obra), tendo como palavras-chave, dentre outras, orgulho e discernimento – além da culpa, fio condutor do arco dramático do protagonista. As conversas vão do aborto a questões ambientais mencionando casos reais específicos (Dorothy Stang) e outros mais genéricos (a menção a grandes poluidores e a modificações climáticas globais). Os insights em voice over de Toller são eventualmente difíceis de absorver, traduzindo divagações bastante enigmáticas. O longa, em síntese, é a proposta de um exercício interpretativo.