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“NO PORTAL DA ETERNIDADE” – A eterna arte da incompreensão

A tristeza vai durar para sempre”: de acordo com Theo van Gogh, essas teriam sido as últimas palavras de seu irmão, Vincent, antes de falecer. Dentre os vários tormentos do artista, uma de suas obsessões parecia ser o eterno. NO PORTAL DA ETERNIDADE é apenas uma justa e respeitosa homenagem a um dos maiores pintores da história.

O longa se passa em 1888, ano em que Vincent acolhe a sugestão do amigo Paul Gauguin de se mudar para Arles, no sul da França, onde encontraria belas paisagens para pintar. Em desfavor do campo fértil para sua arte, contudo, ele precisa lidar com problemas psicológicos e atritos sociais.

Considerando a proposta de homenagear o pintor, o filme é infalível. A escolha de Willem Dafoe para o papel é certeira não apenas pela aparência similar dos dois (o que acaba sendo mero detalhe), mas porque Dafoe tem em Vincent um dos melhores trabalhos da sua já prolífica carreira. O perfil que o ator dá para o pintor é de um ser humano sensível, vulnerável, dedicado, eventualmente assustado e instável, mas não agressivo – ao contrário, a expressão que prevalece é pacífica e serena, quando não de dor. Trata-se, nesse caso, da dor decorrente da própria tristeza e da solidão. Tristeza, porque a arte de Vincent não é compreendida (na verdade, é censurada pela maioria, o que faz com que ele chegue a questionar ao irmão se é um bom pintor); solidão, porque as pessoas não querem se aproximar dele, salvo o irmão (que mora em outra cidade) e Gauguin.

Cartaz de “No portal da eternidade

No caso de Gauguin, a relação entre eles é de “morde e assopra”. Oscar Isaac é convincente até demais no papel, atribuindo-lhe perfil frígido e arrogante, além de, por vezes, deliberadamente inexpressivo. Gauguin é propositadamente irritante e constantemente se desentende com Vincent, porém se revela fundamental em três sentidos: como engrenagem narrativa, pois sua sugestão para o amigo ir a Arles é o incidente incitante do roteiro de Jean-Claude Carrière, Julian Schnabel e Louise Kugelberg; como personagem coadjuvante, na medida em que permite maior aprofundamento na personalidade do protagonista, ao interagir com ele; e como enunciador, pois os diálogos com Vincent sobre as pessoas e sobre a arte são instigantes.

Mesmo centrado na figura de van Gogh, o roteiro tem como subtexto uma análise – e, de certa forma, uma crítica – da sociedade da época, que, intolerante, não compreendia a arte de Vincent, muito menos seus problemas psicológicos. Da rejeição de seus quadros (a cena do dono do restaurante) à repulsa social, o pintor era desrespeitado em todos os lugares, fator que evidentemente contribuiu para o agravamento da sua condição. Quando aparece um padre, vivido pelo sempre imponente Mads Mikkelsen, surge de maneira mais contundente o exame social, considerando que o protagonista percebeu o anacronismo do qual foi vítima, fazendo um coerente paralelo bíblico.

Na direção, o corroteirista Julian Schnabel faz um trabalho de câmera ousado, variando os enquadramentos entre closes e planos gerais nas paisagens, filmando com a câmera na mão – admitindo o tremelicar do quadro – e reduzindo ao máximo os cortes (quase sempre os planos são longos). A identificação cinematográfica primária é bastante diretiva, ora acompanhando os movimentos do protagonista, normalmente em câmera subjetiva, ora se afastando um pouco, com câmera objetiva. Como forma de elipse, ao invés de técnicas clichês, Schnabel usa uma bodycam para filmar as pernas do protagonista enquanto caminha, o que denota longas andanças, quase aventureiras e de considerável esforço físico (ao menos para carregar todos aqueles aparatos), além da mudança da vegetação, que sugere não apenas o passeio, mas a busca por paisagens que valessem uma pintura.

A fotografia de Benoît Delhomme é esplendorosa ao exibir paisagens quase tão belas quanto os quadros de van Gogh. A película ganha um viés idílico tanto no aspecto visual quanto no lírico, propondo ao público momentos de mera contemplação embalados pela trilha musical instrumental de Tatiana Lisovkaia – violino e piano combinados com função de preenchimento. Salvo mais ao final, predomina uma paleta de cores vivas, principalmente verde e amarelo – e é interessante perceber que a cor amarela exerce duas funções: a primeira, como reprodução fidedigna da Casa Amarela (embora não deixe de transmitir, simbolicamente, o alto valor das obras que resultaram do trabalho de Vincent nessa fase); a segunda, mais ao final, no uso de um filtro que simula a sensação de tontura que o protagonista eventualmente sente.

Ao contrário de cinebiografias insossas, “No portal da eternidade” é uma ode a van Gogh, adotando um tom quase paternalista e deveras compreensivo em relação a ele (quando ele se joga em um gramado, realmente se aproxima do infantil). A cena afetuosa em que o irmão se deita ao seu lado é representativa do quão emotivo Vincent foi e do quanto seus problemas o afetavam. De certa forma, ele era altruísta, pois queria compartilhar sua arte com todas as pessoas, que assim passariam a se sentir vivas, como ele. Talvez a eternidade planejada ele não consiga, mas certamente colocou seu nome na história da arte, garantindo um legado duradouro. Eterna mesma parece ser a intolerância humana.

Dedico a presente crítica à pessoa mais importante da minha vida, alguém que viu o filme comigo, se emocionou muito e se encantou com a história do pintor cuja obra tanto admiramos. Feliz aniversário, mãe.