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“O ACIDENTE DO PIANO” – Caricatura contemporânea [27 F.Rio]

Qualquer análise sobre o mundo contemporâneo precisa contemplar as transformações causadas pelas tecnologias digitais em nossas vidas, cotidianos e relações. O universo das redes sociais, dos influenciadores digitais e do engajamento através de seguidores, likes e visualizações ocupa um espaço considerável. O ACIDENTE DO PIANO se debruça sobre o tema percorrendo a linha tênue entre a sátira dos tempos atuais e a caricatura simplificadora do ridículo apolitizado.

(© Diaphana Distribution / Divulgação)

A entrada da narrativa nesse universo presente se dá a partir de Magalie, influenciadora digital imoral e insensível que se tornou famosa nas redes sociais com vídeos chocantes. Após um grave acidente em uma das filmagens, ela se isola em um chalé nas montanhas com seu assistente pessoal Patrick. O repouso é interrompido quando passa a ser chantageada por uma jornalista que detém uma informação comprometedora.

Há uma sutileza inescapável entre a representação crítica e a caricatura distanciadora da protagonista. Adèle Exarchopoulos aparece, inicialmente, como uma jovem que tem em sua imagem várias marcas do cartunesco: o gesso em um dos braços e o colar cervical no pescoço (sinais do acidente que dá título à obra), o aparelho dentário sem razões médicas (simples adereço visual identificador) e a mania de risadas forçadas (revelação da falta de familiaridade com um humor genuíno). A atriz também encarna Magalie como alguém que não só é insensível à dor física, mas também sofre de uma ausência de empatia pelo outro. Então, tem pouquíssima paciência com os fãs, destrata Patrick constantemente, permanece reclusa enquanto está fora das redes e desconsidera os sentimentos alheios. Por isso, essa descrição poderia jogar contra a narrativa por colocar a crítica em uma posição confortável de questionamento a uma figura unidimensional.

O tratamento satírico consegue ganhar mais espaço quando o olhar caricatural se estende para os personagens secundários. Patrick se mostra um sujeito que deixou sua vida entregue aos comandos de Magalie, deixando de estar com a família para viver dentro de uma bolha. Ele se sujeita às ordens mais autoritárias sem conseguir dizer o que pensa ou negar algo despropositado, como fica claro nas exigências de um iogurte específico para as refeições. Uma dupla de irmãos que bisbilhota o chalé confere outra faceta problemática àquele mundo, pois exemplifica o público ávido por um contato com a celebridade. Eles não veem problema de perseguir Magalie até a casa, pedir uma fotografia após atirar bolas de neve na janela de madrugada e invadir o local em busca de alguma recordação. Além dos dois personagens, uma multidão de fãs em volta da grade do chalé sintetizam como os conceitos de fama e repercussão pública dependem cada vez menos de um trabalho elogiável.

Isso porque a presença da jornalista ilumina outras críticas possíveis. A chantagem da repórter é o ponto de partida para questionar um público consumidor que segue e interage com os vídeos agressivos da protagonista. O sucesso dela nas redes sociais gira em torno do mesmo tipo de conteúdo: uma série de lesões graves que ela aplica sobre o próprio corpo para chamar a atenção para sua insensibilidade à dor física. O interesse duvidoso dos fãs por vídeos assim diz muito sobre a banalização e a espetacularização da violência, inclusive com o pai de Magalie sendo seu primeiro apreciador. A jornalista também tenta esclarecer o psicológico da influenciadora, entendendo melhor suas origens, motivações e sentimentos. No entanto, a resistência de Magalie é tão grande que ela assume uma postura defensiva contra quaisquer perguntas mais íntimas. É um comportamento que pode sinalizar uma personalidade que não aceita ser contrariada nem se interessa em conhecer suas emoções, devido à busca por uma satisfação imediatista.

No decorrer de “O acidente do piano”, o diretor Quentin Dupieux se envolve com a armadilha de trabalhar o filme a partir de uma protagonista que segue uma nota só, tendo poucas nuances para além da falta de empatia e de sensibilidade na busca por engajamento. Quando o risco se intensifica, o realizador insere camadas adicionais à personagem e ao estilo da narrativa. Magalie passa a praticar atos violentos contra outras pessoas e um humor nonsense se estabelece em uma dinâmica que lembra os trabalhos dos irmãos Coen, como “Fargo – Uma comédia de erros“. Para além de desenvolver estilisticamente esse princípio de comédia de erros, a mudança de tom serve ao propósito de desenvolver outras possibilidades de crítica à cultura dos influenciadores digitais. Então, a alteração da postura de Magalie afeta sua presença online e os vídeos que serão publicados até um desfecho chocante. Nesse ponto, o olhar da câmera se volta para o público consumidor, esse que vai atrás de todo o tipo de conteúdo independentemente das circunstâncias ou se mantém presente apenas quando seu interesse é saciado. É sintomática, portanto, a cena em que o público nas grades da casa vai embora como se o espetáculo tivesse chegado ao fim.

*Filme assistido durante a cobertura da 27ª edição do Festival do Rio (27th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).