“O AGENTE SECRETO” – Suco de Kleber [49 MICSP]
“Suco de Brasil” é uma expressão coloquial que se refere à essência do Brasil, isto é, àquilo que mais o caracteriza. Em O AGENTE SECRETO, a partir de um ponto de vista bem recortado no tempo e no espaço, o que se vê é “suco de Brasil” com tempero crítico, mas simplificações e excessos comprometedores.
Marcelo é um especialista em tecnologia que, no ano de 1977, chega ao Recife no período de Carnaval. Sua intenção é reencontrar o filho e fugir com ele, mas percebe que permanecer no anonimato e se esconder é mais difícil do que pensava.

O que mais chama a atenção na direção de Kleber Mendonça Filho é o trabalho primoroso de reconstituição de época. Da trilha musical aos figurinos, da caracterização dos homens com camisas abertas mostrando os pelos do peito às citações cinematográficas diretas (“Tubarão” e “O iluminado”), o filme é um dilúvio de referências do Zeitgeist. Ao mesmo tempo em que se sabe dos perigos daquele momento histórico brasileiro, o tema principal não é esse. Em outras palavras, a ditadura militar é um fantasma à espreita, guardando sempre lateralidade em relação à trama principal e estimulando a opressão sentida pelo protagonista.
Wagner Moura encontra em “O agente secreto” espaço para dois perfis diferentes, em razão do trânsito cronológico da narrativa. O primeiro é de um homem com um backstory traumático, cuja expressão sofrida e fala mansa denotam a raiva acumulada por não ter tido a vida que gostaria. Porém, nessa mesma versão reside alguém combativo e inteligente o suficiente para saber como agir diante do perigo (experiência que contrasta com os flashbacks), além de decidido a alcançar o que pretende. No segundo, o ator se transforma na voz, no olhar e no modo como gesticula, criando alguém mais leve e tranquilo. O futuro diegético, contudo, não se articula bem com a trama: os flash forwards são escassos, isolados e parecem desconexos quando surgem; já as cenas do futuro, por sua vez, são anticlimáticas e desinteressantes (inclusive porque não são desenvolvidas narrativamente).
Outro equívoco grave – provavelmente o mais severo – do roteiro é a unidimensionalidade das personagens. Não existem nuances, pois o maniqueísmo impera. Marcelo e quem está ao seu lado são o epítome das virtudes, ao passo que seus inimigos personificam a maldade. Isso não seria problemático se os vilões não fossem retratados com tamanha singeleza (pois Marcelo, em um momento específico, comete o deslize de reconhecer que deseja a morte de uma pessoa): Bobbi (Gabriel Leone) é estúpido e incompetente (e o que justifica ele e seu comparsa “terceirizarem” o serviço?); Augusto (Roney Villela) é completamente inútil, salvo como uma crítica aos militares que, todavia, não dialoga com a trama; e o Delegado Euclides (Robério Diógenes) é a figura de poder dentro da polícia que (1) julga as pessoas pela primeira impressão, (2) usa o aparato estatal para repetir privilégios e (3) romantiza cicatrizes da Guerra mesmo sem entendê-las de verdade (a participação de Udo Kier é absolutamente supérflua), nada mais. O ápice da undimensionalidade está com Ghirotti (Luciano Chirolli). A personagem constitui uma crítica a um grupo ideológico que comunga de valores como o libertarianismo, o machismo, a xenofobia, o reacionarismo etc., porém a maneira como ele aparece é demasiado simplista. Ainda que existam (mesmo hoje) pessoas com aquele perfil, Mendonça Filho não sabe ser sutil; pelo contrário, sua crítica é gritante e perde força na medida em que se restringe ao extremo. Não há humanidade no vilão, ele é simplesmente a encarnação da maldade. Seria muito mais inteligente mostrar que, apesar de seus defeitos, ele também tem um lado humano, que, no entanto, pode ser corrompido por eles. Da maneira como é apresentado, ele serve apenas para fazer troça de tal grupo ideológico, o que pode regozijar uma plateia que se deleita com esse escárnio, mas não representa nada capaz de evitar pensamentos afins.
“O agente secreto” é um filme com excessos (poderia ser bem mais curto) e um crowd pleaser (vide a personagem de Tânia Maria, que é um alívio cômico sem nenhuma profundidade). Patriótico na valorização da cultura brasileira (imagens de Chacrinha, Os Trapalhões, Caetano e Bethânia etc.), o longa não perde o tom crítico, por exemplo, ao expor a conduta dos policiais no prólogo, ao exibir um crucifixo ao lado do retrato do Presidente e da bandeira do Brasil em uma repartição pública e ao reconhecer verbalmente que algumas coisas são feitas pelo famoso “jeitinho brasileiro”. De certa forma, isso é “suco de Brasil”. Mas a produção é também “suco de Kleber”, seja pela forte presença do gore (como em “Bacurau”), pelas referências cinematográficas que incluem até mesmo as salas de projeção (como em “Retratos fantasmas”) – dois aspectos que levam o longa à linguagem dos filmes B de terror, soando como uma liberdade poética do cineasta -, pela valorização do Recife (como em toda a sua filmografia) ou pela forte carga política (idem). Para bem e para mal, “O agente secreto” resume o trabalho de seu diretor com maestria.
* Filme assistido durante a cobertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.

