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O ANJO – Cinebiografia curiosa [42 MICSP]

Uma cinebiografia curiosa: essa é uma boa definição para o argentino O ANJO. O próprio nome não parece fazer sentido em se tratando de um criminoso frio cujo currículo justificou um cárcere de mais de quarenta anos. Mas é essa ideia que desperta a curiosidade inicial: o que haveria de angelical em uma história como essa?

Na trama, Carlos (Carlitos para os íntimos) é um garoto cujo principal talento é, assumidamente, subtrair bens das outras pessoas. O filme, que se passa na década de 1970, acompanha o crescimento do jovem no crime, dos pequenos furtos aos homicídios, sozinho e acompanhado – na sua companhia, normalmente está Ramón, um colega de escola.

Interpretado muito bem por Chino Darín, Ramón surge de forma esquisita na narrativa (principalmente pelo que passa a representar), mas tem importância fundamental. Seu arco dramático próprio – quer ser um cantor famoso, contrariando a vontade dos pais, mas apoiado pelo amigo Carlitos – é o que enseja a única cena surreal da película (a participação de Carlos na apresentação de Ramón). Os outros coadjuvantes não têm grande aprofundamento; um deles, Miguel, é muito mal utilizado e soa forçado na narrativa.

Vivido por Daniel Fanego, José, pai de Ramón, é uma personagem bastante enigmática do filme: líder da associação criminosa, sua função perante Carlitos é propositadamente ambígua: seria uma figura paterna ou um foco latente de desejo sexual? De um lado, ele tenta conter a audácia do Anjo; de outro, a cena do banheiro é de uma tensão desconfortável (sem olvidar um plano-detalhe bem inesperado). Note-se que seu figurino permite interpretar das duas formas, dada a neutralidade da regata branca e dos calções folgados. A mesma lógica se aplica ao próprio Ramón, que pode representar para Carlitos tanto um irmão quanto um interesse sexual. Algumas cenas podem parecer incisivas para apontar pela segunda conclusão, todavia a infantilidade do protagonista (que existe, a despeito dos crimes que comete) pode explicar o contexto.

É o protagonista, contudo, o melhor atributo da produção. Carlitos recebeu o apelido (na vida real) pela aparência andrógina, aparentemente inofensiva, e pelos “cachinhos” que ostenta, contudo é o discurso do início que enaltece a faceta angelical do garoto, que afirma ser um “enviado do céu”. Dissimulado, engana os pais com facilidade através de mentiras variadas e frases de efeito, como “eu sou confiável”. Se ele porta armas, para a mãe, basta dizer que elas são falsas, para a namorada, que são para protegê-la. Por trás de um rosto inocente e uma fala polida – por exemplo, sempre pedindo licença – está um viciado em crimes patrimoniais almejando sempre alçar voos mais altos. São várias as ocasiões em que ele “ri na cara do perigo”, confirmando a imprudência da sua juventude.

Dificilmente Lorenzo Ferro encontrará um papel que lhe seja tão confortável quanto Carlitos – parece que o jovem ator nasceu para interpretar o Anjo. Seja pela caracterização fiel à descrição (rosto que transmite pureza, em especial pelo olhar, além dos indispensáveis “cachinhos”), seja pela atuação de Ferro, o retrato de Carlitos é tão verossímil que quase chega ao nível documental. O que é ainda mais interessante é que, apesar de o protagonista ser um criminoso, a identificação cinematográfica secundária é facilitada pelo seu carisma inegável. Ramón, por outro lado, tem uma aparência muito mais bruta e máscula, reforçada pelas grandes costeletas.

Enaltecendo a diferença entre os dois está o figurino: Ramón usa um vestuário mais formal e sóbrio (jaqueta e camisa, por exemplo), com cores frias e discretas, enquanto Carlos não dispensa um suéter de gola alta – isto é, quando usa algo da cintura para cima – e calças apertadas – diga-se, quando não está apenas de cueca. Marca dos anos 1970, as calças “boca de sino” estão presentes com força. A fotografia da película é atenta para inserir ao menos um elemento visual vermelho em todos os planos em que Carlos aparece – seja em suas meias, sua cueca, uma cadeira etc. -, sugerindo o perigo que ele representa.

A direção de Luis Ortega tem a felicidade de unir a técnica à insinuação. O storytelling não é dos melhores, porém, em outros aspectos, elogios são necessários. Por exemplo, se José era mais que um colega de “trabalho” para Carlos, cabe ao espectador decidir, pois a resposta não está explícita. A câmera de Ortega é bastante movimentada, com composições belas, dada a proposta. A montagem usa cortes secos para as elipses iniciais, que são mais curtas, bem como fusão nas transições de elipses mais longas, quando a narrativa acelera cronologicamente.

A trilha musical do filme é usada de maneira excepcional. Quando intradiegética, rende momentos divertidíssimos (como a cena embalada por “Corazón contento”, de Palito Ortega), ou então ela simplesmente exerce função de ponte sonora (de extradiegética passa a ser intradiegética, como na cena em que Carlos desliga o rádio) – aliás, a mixagem de som também exerce papel de ponte sonora (como quando o protagonista esbarra em uma pessoa e uma sirene para de tocar). A escolha de canções é ótima, transitando entre o ritmo da época (“El estraño del pelo largo”, de La Joven Guardia) e algo mais contemporâneo (“La casa del Sol nasciente”, também de Palito Ortega).

Essa mescla é representativa da produção como um todo: tendo um diretor pouco experiente no comando (que também assina o roteiro), mas um produtor do calibre de Pedro Almodóvar (juntamente com o irmão Agustín Almodóvar, Axel Kuschevatsky e Sebastián Ortega), a cinebiografia “O Anjo” é chamativa ao menos na curiosidade.

*Filme assistido durante a cobertura da 42ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.