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O DESEJO DE ANA – Vestígios e prova [43 MICSP]

Aviso: a crítica que segue pode conter alguns spoilers.

O desejo muitas vezes pode ser uma força incontrolável que se impõe perante o indivíduo, que, impotente, se sujeita a ele. O DESEJO DE ANA é um filme que trata de um tema capaz de causar desconforto, não se adequando a parâmetros axiológicos de seu conteúdo, mas tendo plena validade dentro da sua proposta. A produção, distante da excelência, tem algumas virtudes.

Ana, a protagonista do longa, é uma mãe solteira que vive uma vida tranquila cuidando de seu filho Mateo. Essa tranquilidade é abalada com a chegada inesperada de Juan, seu irmão, que estava ausente há muito tempo. Ana então se divide entre abraçar suas memórias e ceder às suas vontades mais obscuras ou resistir e enfrentar o que Juan representa para ela.

Cartaz de “O desejo de Ana

O assunto do filme é óbvio na sinopse oficial, na sinopse constante acima e nos primeiros minutos do filme, quando Juan aparece – nesse caso, o abraço entre os dois dá clara margem para interpretações diversas, principalmente em razão do diálogo entre eles. Laura Agorreca não faz nada extraordinário em termos de interpretação, mas é capaz de fornecer a Ana a necessária dubiedade do papel, principalmente no que se refere à dúvida quanto aos próprios atos praticados. Diversamente, David Calderón León torna Juan mais incisivo e decidido, o que dá mais solidez à personagem. Juntos, a ausência de texto não é um problema, já que os olhares lançados são bem significativos.

Ian García Monterrubio encanta como Mateo, uma criança esperta e carinhosa com a mãe – é impossível negar a fofura de um filho daquela idade se oferecendo para fazer um chá para a mãe que, chorando, diz (mente) que está gripada. A interação entre Mateo e Juan também é muito boa, não apenas porque este assume uma função paterna perante aquele, mas também porque tio e sobrinho se entendem muito bem (seja andando de motocicleta, seja dançando na ausência de Ana, que, ao chegar, fica comovida com a cena).

É difícil prever o encaminhamento dado à narrativa. Isso porque o roteiro de Emilio Santoyo preocupa-se mais em esticar a psique de Ana do que dar evolução ao plot, em termos narrativos. No primeiro ato, fica evidente a monotonia da sua rotina: cuidar do filho pequeno e das plantas, trabalhar em casa etc. Mesmo quando ela vê seus vizinhos tendo relações sexuais, não há uma grande mudança psicológica. Com a chegada de Juan, no entanto, ela fica sem chão. Com o evento, ela se torna inábil com o namorado (precisando se masturbar após o sexo) e detecta sentimentos conflitantes em si mesma. Ao mesmo tempo em que atira o travesseiro no irmão para este dormir no sofá da sala, dá uma lambida em sua bochecha, tal como faziam na infância.

Muitas dúvidas pairam sob a mente de Ana: seria possível ignorar tudo o que aconteceu na ausência de Juan e retomar o relacionamento que tinham antes? Seria possível fingir que nada aconteceu? É possível reviver aqueles sentimentos do pretérito? Ela deveria fazer isso? Para Juan, “as coisas não mudam nunca”. O desejo não se esvai. O que não significa que ele ainda seja irresistível, já que eles não são mais adolescentes e já enfrentam a vida adulta.

Na direção, Santoyo não dá pistas sobre o desejo de Ana, na verdade, isso é óbvio, como já dito. O que ele faz é esquentar o clima da sua trama, através da trilha musical e de imagens simbólicas. Um mamilo, uma lambida, uma balada, um sorriso. Com a pouca profundidade de campo, as personagens são privilegiadas – o que auxilia também em uma cena de sexo, o que corrobora a insatisfação da protagonista no momento. A mise en scène é boa, principalmente em duas cenas de beijos: em uma, com luz vermelha, simbolizando a paixão; em outra, com cenário branco, simbolizando a pacificação; em ambas, o enquadramento nas margens do campo sugere a marginalidade do ato.

Não são poucos os simbolismos de “O desejo de Ana”, de uma lata sendo amassada (raiva da situação) ao trilho de um trem (caminho sendo percorrido). Entretanto, os setenta e nove minutos de duração do filme não se justificam, a despeito do tom poético e da abordagem lenta (a cena em que Ana e Juan aparecem adolescentes é esteticamente elogiável, mas narrativamente descartável, por exemplo). Há vestígios de um bom roteiro, de um bom elenco e de uma boa direção. O filme é prova de que os envolvidos não atingiram seu potencial.

* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.