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“O DOUTRINADOR” – HQ brasileira vira um bom filme de ação

Baseado em uma HQ brasileira, O DOUTRINADOR entra em cartaz em um timing oportuno, um momento arrastado da política brasileira em que escândalos de corrupção assolam o país mais do que nunca. Ao invés de adotar um viés cômico, como “O candidato honesto”, ou de um drama baseado em fatos reais específicos, como “Polícia federal – a lei é para todos” – independentemente da qualidade desses dois longas -, o filme prefere usar fatos reais não específicos, unindo-os à ficção, no que resulta um bom filme de ação.

O nome da película se refere a um vigilante mascarado, que decide se vingar dos políticos corruptos impunes, ao mesmo tempo em que a tarefa significa uma vingança pessoal. O homem por trás da máscara é Miguel, um policial sério e dedicado que se cansa com a inércia do sistema e decide agir pelas próprias mãos.

É melhor encarar a produção como uma ficção, por duas razões. A primeira é que o roteiro não parece mirar em políticos determinados, dificultando a identificação com um ou outro nome. Não são apontados Fulanos e Beltranos, mas um contexto generalizado de um grupo. Discursos como os de cobrir gastos de governo anterior, pastores que apoiam um candidato e promovem uma bandeira anti-LGBT, desvio de verbas da saúde pública e falas públicas moralizadoras opostas às conversas sigilosas de conteúdo espúrio são alguns exemplos presentes no longa, mas também na realidade – e com muitos envolvidos.

A segunda razão é que o filme é ideologicamente radical, assumindo-se, inclusive, enquanto tal. Se o script é corajoso no principal plot point do primeiro ato, exagera na audácia do modus operandi do Doutrinador, com soluções extremas bastante questionáveis – afinal, o exercício arbitrário das próprias razões é crime. Mas é como Luciano Cunha concebeu a ordem original, tendo os demais roteiristas (Gabriel Wainer, Mirna Nogueira, L. G. Bayão e Denis Nielsen) apenas seguido essa ideia.

Sério, trata-se de um filme de ação com poucos alívios cômicos que se propõe a ser uma história de origem: Miguel se tornou o Doutrinador em razão da sua personalidade, de circunstâncias pessoais e fatores acidentais. Indignado com o status quo, ele se vê impulsionado a agir porque ele é assim. O fato de ser policial civil ajuda na empreitada de vigilante, pois tem mais fácil acesso a armas, além do condicionamento físico ideal. A gota d’água para surgir o anti-herói foi resultado de um acidente muito mal explicado no texto, enquanto o surgimento da máscara foi também casual. Em síntese, uma história de origem que não é das melhores, mas é aceitável.

Kiko Pissolato é quem interpreta Miguel, personagem crível, verossímil e que não se mostra genérico, mas que realmente ganha riqueza na personalidade quando surge seu alter-ego. Moralmente questionável em suas atitudes (chantageia Nina, ainda que com uma boa finalidade, do seu ponto de vista), Miguel se torna obsoleto quanto mais o Doutrinador entra em cena. Marília Gabriela é subaproveitada em um papel de participação diminuta, enquanto Eduardo Moscovis repete a atuação que tinha feito em uma novela (mais precisamente, “Senhora do destino”), pois o papel não exige muito dele. Samuel de Assis é Edu, personagem sem um arco dramático próprio e que poderia ser fundamental em determinado estágio do roteiro, mas sua participação acaba sendo frustrante.

Ainda no elenco, quem toma os holofotes é Tainá Medina, intérprete de Nina: além de poder ostentar uma caracterização marcante (maquiagem e figurino em estilo gótico), a atriz imprime ao papel acidez tanto nas falas (“você é policial, você pode tudo, esqueci”) quanto nos momentos mais ternos da personagem (como a relação com a mãe, que é muito mal desenvolvida). É com ela que ficam as melhores piadas, além da tentativa de contraponto ao anti-herói – é seu sidekick de bastidores, como vários possuem. Por outro lado, a filha de Miguel é a pior personagem, com falas vergonhosamente forçadas – por exemplo, “mãe, olha a boca, tem criança no local” – e artificiais.

O diretor Gustavo Bonafé somente justifica um prólogo in media res para preparar o espectador para a sua direção estilizada, exemplificada pelos créditos iniciais (imagens reais com filtro vermelho e ao som de rap). E, sem dúvida, a direção é o que o longa tem de melhor. Embora o CGI do final seja decepcionante, Bonafé tem êxito na proposta de fazer um filme de ação (com doses consideráveis de violência). As coreografias de luta são razoáveis, mas é o rock pesado das cenas que cria uma atmosfera de adrenalina – que, por sua vez, combina com o ritmo do filme (acelerado também em razão da ágil montagem de Federico Bioni).

O design de produção é ótimo, tanto na estética da cidade em que o Doutrinador age, com muitas luzes em neon, quanto no visual do anti-herói, cujos olhos vermelhos tornam a máscara ainda mais enigmática e assustadora para seus inimigos. A película conta ainda com mensagens subliminares, como pichações nas paredes (“legalize já”) e o número 420 na roupa da mãe de Nina. A fotografia de Rodrigo Guedes de Carvalho é majoritariamente noturna, aproveitando o já citado neon e adicionando bastante cinza, que transmite a podridão moral da cidade.

Sandro Correia voltará para a cadeia? Pouco importa. A ideia de “O Doutrinador” é puro entretenimento, sem reflexões de grande envergadura ou indiretas para a vida real. A produção é diferenciada no mercado brasileiro, não acostumado com bons filmes de ação e/ou baseados em HQs nacionais. Mas é a prova de que o produto interno pode sair da sua zona de conforto.