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“O REI” – Épico que faz jus ao legado

Para os puristas, O REI é uma deturpação da obra original shakespeareana. De fato, as versões de Laurence Olivier e Kenneth Branagh são mais fiéis a “Henrique IV – parte 1”, “Henrique IV – parte 2” e “Henrique V”, enquanto o original Netflix é uma mescla das três, mantendo a ideia geral. Ignoram, porém, que Shakespeare também não foi plenamente fiel à História, moldando suas histórias para adequar-se ao teatro elisabetano. Logo, “O rei” deve ser avaliado dentro de suas próprias premissas, ainda que ele destoe pontualmente de seus textos-base.

O protagonista do filme é o jovem Hal, filho mais velho e, enquanto tal, herdeiro do trono inglês, mas que não se dá bem com seu pai, o Rei Henrique IV. Alheio ao castelo e às questões monárquicas, Hal prefere levar uma vida boêmia ao lado de seu amigo Falstaff, que um dia já foi um guerreiro glorioso, mas que agora dedica-se apenas a roubos e a muita diversão em tavernas. Com a saúde frágil do Rei, parece aproximar-se o momento para o protagonista assumir a coroa, algo que aparentemente não é o desejo de ninguém.

Cartaz de “O Rei

Escrito por Joel Edgerton, intérprete de Falstaff, e por David Michôd, que também dirige o longa, o roteiro do filme segue o espírito shakespeareano de enaltecer um monarca que se tornou um dos mais valorosos da História da Coroa inglesa. O passado de Hal é retratado en passant e sugerido por falas do pai, mas não há nada aprofundado nesse quesito. O que é fundamental na História, nos clássicos e no longa é a transição do protagonista com a coroação. São suas palavras: “(os súditos) sofrerão a indignidade de servir a mim, o filho genioso que tanto insultaram. Mas saibam que serão cuidados por um Rei totalmente diferente”. Não é apenas o corte de cabelo que muda nele, mas o senso de responsabilidade e a somatória dos valores pelos quais os ingleses prezavam (e ainda prezam), abandonando, logo no início do filme, as aventuras com Falstaff.

Parcelado em cinco atos, o roteiro dá espaço à versão boêmia de Hal apenas no primeiro, quando a fotografia da produção (assinada por Adam Arkapaw) privilegia cenários escurecidos e luz natural – no segundo, os cenários são mais diurnos ou com uso de muita iluminação de velas. Michôd tempera bastante as festas do jovem príncipe com Falstaff, resumindo esse período em basicamente uma cena. Ironicamente, a direção evita mostrar nudez (o que seria de se esperar), mas não uma cabeça sendo degolada. Na prática, Hal é apenas exibido apenas como um preguiçoso, o que não impede que seja mostrada a sua moralidade, como quando aconselha seu irmão Tomás (Dean-Charles Chapman, discreto em razão do pouco tempo de tela) a não aceitar a tarefa que o pai lhe designou e, principalmente, ao propor uma luta com Hotspur (Tom Glynn-Carney, apenas promissor). Apesar de não ter grande participação, Hotspur tem a importante função de demonstrar o quanto Henrique IV (Ben Mendelsohn, praticamente em uma ponta) rejeita o primogênito, ao preferir um soldado incapaz de guardar suas insatisfações perante o Monarca.

Dividindo o texto entre o clássico e o moderno (uma das maiores inteligências do script, usando falas com vocabulário mais erudito apenas quando necessário), é possível perceber a versão raivosa de Hal (como quando chama o pai de monstro), que se esvaece com o crescimento de uma figura exemplar. Timothée Chalamet é inquestionavelmente o grande destaque do longa, aproveitando bastante seu olhar inocente para traçar o perfil de um jovem monarca religioso, humilde, sábio, culto e bravo.

A questão religiosa tem atenção especial na obra, como uma sutil crítica aos clérigos, que, ao contrário de leigos como Henrique V, têm uma ânsia pouco coerente pela guerra (não é à toa que a roupa do arcebispo é vermelha). Reunindo as características de um governante ideal pregadas na filosofia de Erasmo de Rotterdam, Henrique V tem a humildade de ouvir seus conselheiros, além da sabedoria de tomar a melhor decisão (inclusive no que se refere ao início de uma guerra, que evita a todo custo porque, ao contrário de seu antecessor, sabe das suas consequências nefastas). Culto, fala francês com fluência, único aspecto de seu backstory de estudos retratado na película (a parte bélica aparece na primeira cena de luta, cuja coreografia não é das melhores). Bravo, não se furta a batalha alguma, tampouco ao sacrifício de si por um bem maior, se necessário for. Nesse perfil complexo, Chalamet é capaz de se encolher diante de um delfim francês que o ridiculariza e, na cena seguinte, discursar vigorosamente para injetar coragem e motivação em seus soldados, para o olhar orgulhoso de Falstaff.

Edgerton vive muito bem uma versão puritana de Falstaff, que serve como primeiro mentor de Hal – o herói, por sua vez, o chama de amigo e reconhece um erro (mais uma virtude do protagonista) ao negligenciá-lo em parte da sua jornada. Como segundo mentor aparece Sean Harris como um sereno Ministro da Justiça, rendendo diálogos esplendorosos junto a Chalamet (a atuação de ambos é magistral). No elenco está também Robert Pattinson em mais um bom trabalho, a despeito do sofrível sotaque francês forçado (seria melhor um ator francês no papel, erro de escalação, não do ator). Ainda, Lily-Rose Depp participa de um final apressado, mas não por isso menos interessante (as viradas podem não convencer pela rapidez, porém atraem por dar nova concepção à trama).

O Rei” não é – e nem quer ser – a tradução literal do teatro shakespeareano para o cinema, muito menos um retrato fidedigno da História. É um filme coeso, fiel ao que se propõe e que faz jus ao legado desses dois elementos que são seus pilares. Entre um design de produção afiado (as armaduras, por exemplo, são bem convincentes), uma fotografia de qualidade (a cena em que Hal está no mar, filmada com filtro azul, é belíssima) e uma montagem que, salvo no ato final, dá bom ritmo à narrativa (sem olvidar os inteligentes raccords de associação, como o plano contrapondo Henrique V ao arcebispo seguido de outro em que o monarca reza sozinho com um terço em mãos), há uma produção que não merece ser menosprezada: o longa é um dos melhores da sua seara (épico da monarquia inglesa) nos últimos anos.