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“O REI LEÃO” (1994) – À altura do legado de Shakespeare

Morre o Rei pelas mãos do próprio irmão, que assume o trono, ao lado da Rainha. Após um longo período de perturbação, o Príncipe decide vingar a morte de seu pai. Os nomes dessas personagens podem ser Hamlet (Rei), Cláudio (irmão), Gertrudes (Rainha), Hamlet (Príncipe), tanto quanto, respectivamente, Mufasa, Scar, Sarabi e Simba. Das várias adaptações cinematográficas da obra de Shakespeare, O REI LEÃO é uma das melhores e mais exitosas em sua proposta (sem olvidar versões também espetaculares, como a de Laurence Olivier, de 1948, e a de Kenneth Branagh, de 1996).

A trama do filme é, de fato, bastante similar à da peça (existem, inclusive, trabalhos acadêmicos muito bons sobre a relação entre as obras). Com a morte de Mufasa graças a Scar, o jovem Simba é exilado pelo tio, fugindo para longe da Pedra do Reino. Entretanto, muito tempo depois, Simba retorna, já adulto, para vingar o assassinato do pai e retomar a coroa que é sua por direito.

Como não poderia deixar de ser, a produção da Disney atenua bastante o conteúdo trágico de “Hamlet”. Mais singelo nas subtramas, o texto de Linda Woolverton, Irene Mecchi e Jonathan Roberts não aprofunda na trajetória de Nala, ao contrário do que ocorre com Ofélia, cujo arco dramático é deveras melancólico. Não obstante, os coadjuvantes de “O Rei Leão” servem para dar tons cômicos à película, principalmente Zazu, Timão e Pumba. Até mesmo os antagonistas (Scar e as hienas) têm viés humorístico (o que os torna simpáticos, a despeito das atitudes nefastas), sem prejuízo da sua função narrativa – Scar, por exemplo, é a encarnação do cinismo e da ironia (como na frase “oh, eu me sinto horrível”), costumeiramente querendo dizer mais do que efetivamente fala (“a vida não é justa, não é!?”).

Cartaz de “O Rei Leão“, quando relançado nos cinemas, em 3D

Tendo a veia shakespeareana, sentimentos densos como culpa, traição, vingança e amor se fazem presentes com intensidade. Conflitos na peça se repetem no longa, principalmente a dúvida – em especial, a dúvida sobre si mesmo (Hamlet não sabe se o fantasma do pai é real ou se está louco; Simba fica inseguro sobre o seu retorno à Pedra do Reino). Quando Scar sugere a Simba que fuja (na prática, uma nova emboscada, que, todavia, fracassa), o plot point é similar ao de “Hamlet”, quando Cláudio manda o Príncipe à Inglaterra – a diferença é que Rosencrantz e Guildenstern, amigos de Hamlet, são substituídos por Timão e Pumba, que criam o pequeno leão.

Rodeado de polêmicas, “O Rei Leão” pode ser interpretado de maneira contrária à discriminação (Timão e Pumba seriam um casal homoafetivo que adota Simba como filho) ou como uma obra preconceituosa (as hienas seriam os imigrantes indesejados) – a primeira hemenêutica, contudo, soa mais coerente com o espírito da obra, cuja ideia governante pode ser resumida como a inevitabilidade, ainda que tardia, da punição aos malfeitores, de um lado, e da premiação dos benfeitores, de outro (sem prejuízo, é claro, de outras interpretações).

O maniqueísmo da narrativa é justificado pelo seu objetivo pedagógico: voltada prioritariamente ao público infantil, a animação preza por fornecer lições edificantes à plateia. Valem ser citadas: a noção da cadeia alimentar (representada em um diálogo entre Mufasa e Simba, bem como na belíssima canção “Circle of life” / “Ciclo sem fim”), o mantra “hakuna matata” (com Timão e Pumba, o protagonista aprende uma nova filosofia de vida, que não exclui a anterior, mas constitui a sua personalidade), o respeito à natureza (que é o que as hienas não fazem) e a valorização das origens (“lembre-se de quem você é” na animação e “lembra-te de mim” na peça).

Na direção, Roger Allers e Rob Minkoff fazem um trabalho soberbo ao privilegiar a vivacidade do longa sem que isso ofusque os subtextos. A despeito do drama do incidente incitante, o arcabouço cenográfico é primordialmente de cores alegres e as músicas são empolgantes. Imageticamente, a Pedra do Reino exerce função simbólica essencial: primeiro, para mostrar o mundo comum do herói; depois, como lembrança (pois deixa de aparecer), em contraposição ao novo lar de Simba; por fim, novamente como contraponto, exibindo o resultado do reinado de Scar (escancarando o quão equivocado é seu modo de governar).

O design de produção de Chris Sanders é riquíssimo, com cenários muito fiéis ao que se pode ver na natureza, privilegiando desenhos feitos à mão – isto é, o trabalho é majoritariamente artesanal, com pouco uso de animação digital (mesmo nesses casos, há coesão visual com a outra parte). Os animadores observaram os animais retratados, dando fidelidade ao seu movimento e seu comportamento. Ainda no visual, a título exemplificativo, a canção “Be prepared” / “Se prepare” começa com Scar entre fumaças (simbolizando seus planos ocultos) de coloração verde (representando a expectativa que o vilão tem para assumir a coroa).

A trilha musical da produção é de responsabilidade de três profissionais gabaritadíssimos: a parte orquestral é assinada por Hans Zimmer, o segundo compositor de trilhas para filmes mais premiado da história (atrás apenas do inigualável John Williams); Tim Rice escreveu as letras desse e de outros sucessos, como “Evita” e “Aladdin”; Elton John compôs as músicas. É verdade que nem todas as canções têm função narrativa, contudo a potência de “Circle of life” e de “Can you feel the love tonight” / “Nesta noite o amor chegou” não tem precedentes. A maioria delas, inclusive, rege sequências inesquecíveis – “Ciclo sem fim” torna o prólogo simplesmente épico; “Hakuna matata” conta com uma elipse fenomenal; “Nesta noite o amor chegou” é o ápice sentimental da película.

Na dublagem, as duas versões são excelentes. Na original, destacam-se Jeremy Irons (Scar), James Earl Jones (Mufasa), Rowan Atkinson (Zazu), Whoopi Goldberg (Shenzi) e Matthew Broderick (Simba adulto); na brasileira, Patrick de Oliveira, Garcia Junior (Simba criança e adulto, respectivamente), Paula Tribuzi (Nala adulta), Jorge Ramos (Scar) e Paulo Flores (Scar). Não se pode esquecer também dos hilários Timão e Pumba, nas vozes de Nathan Lane e Pedro Lopes, para o suricato, e Ernie Sabella e Mauro Ramos, para o “senhor porco”.

A base em uma obra de um dos maiores e mais influentes dramaturgos de todos os tempos é um pequeno sinal da qualidade imensurável de “O Rei Leão”. De todas as adaptações heterodoxas (releituras) de Shakespeare para o cinema, é comparável apenas, talvez, ao também clássico “Amor, sublime amor” (que dá nova roupagem a “Romeu e Julieta”) – o filme de 1961 é nada menos que o musical mais premiado da história da sétima arte. O acúmulo de superlativos não constitui hipérbole desmedida: a maravilhosa animação faz jus às maiores comparações possíveis.